O desejo de reencontro no caminho para Damasco

Os casos de algumas personalidades que se converteram ao catolicismo ilustram como a cultura de base cristã tantas vezes perde a sua dimensão mais exigente e transformadora para se ficar por uma série de ideais atropelados por uma sociedade hipócrita.

Entre os que cresceram ambientados às manifestações mais banais como às mais bizarras do cristianismo, alguns terão suspeitado o quanto isso lhes roubou um certo assombro face a esse exemplo tão incensado como esbatido de há dois mil anos para cá. Se o baptismo oferece uma garantia em caso de morte prematura, por causa do pecado original e outras obrigações de pureza, aqueles a quem foi retirada a possibilidade de descobrir Cristo como a um perfeito estranho, podem pressentir que passaram ao lado do aspecto essencial da conversão. E o primeiro obstáculo é verem-se livres dos efeitos de uma certa banalização do Bem.

Em vez de ouvir falar do Filho do Homem em surdina, como de um rebelde difícil de engolir em qualquer era, ficou todo este espavento, mais próprio da febre que provoca um ídolo rock, uma tão lendária quanto exausta figura com um atordoante culto em seu redor. O tipo de groupies que, se no que toca ao fanatismo nada ficam a dever aos das bandas que enchem estádios, muitas vezes trocam o exemplo da paixão quase suicidária pelo empedernido cerimonial de um culto que fez da imortalidade o seu grande empenho.

Como lembrou Joseph Ratzinger num texto escrito uns anos antes  do conclave de 2005 que o elegeu, «a palavra grega ‘converter-se’ significa:  reconsiderar, pôr em questão o próprio modo de viver e o comum; deixar entrar Deus nos critérios da própria vida; não julgar simplesmente de acordo com as opiniões correntes».

Nesse texto, o sucessor de João Paulo II insiste que a conversão passa, não tanto por acatar e acomodar-se a uma ordem geral, mas antes por «não viver como vivem todos, não fazer como fazem todos, não sentir-se justificados em acções duvidosas, ambíguas, perversas simplesmente porque há quem o faça». Por outro lado, se Ratzinger deixa claro que «a conversão é em primeiro lugar um acto pessoalíssimo, é personalização», adianta que «quem se converte ao exemplo de Cristo não pretende criar uma autonomia moral própria, não pretende construir com as próprias forças a sua bondade. ‘Conversão’ (Metanoia) significa precisamente o contrário: abandonar a auto-suficiência, descobrir e aceitar a própria indigência».

Conhecemos casos de figuras públicas que se converteram ao catolicismo já no meio do caminho da vida e até bem para lá dele. Entre nós, o caso da antiga dirigente comunista Zita Seabra foi dos que mais atenção mereceu. Há o caso também de Luís Miguel Cintra, fundador da extinta Cornucópia, e de Paulo Varela Gomes, o escritor e historiador de arte que morreu vítima de um cancro no ano passado, tendo relatado de forma admirável a sua experiência enquanto doente terminal, nomeadamente através de um testemunho – Morrer é mais difícil do que parece –, texto que teve uma vastíssima repercussão no espaço público, e no qual, relatando como esteve à beira de se matar, defende que o «suicídio é uma ofensa frontal à vontade de Deus, que quer que a morte de cada cristão seja a sua disponibilidade para se entregar à Cruz no momento em que Cristo quiser e da maneira que Ele decidir».

Ali abordava também o processo da sua conversão, tendo mais tarde esclarecido como esta ocorreu: «Fui baptizado quando era criança e as minhas estadas na Índia [enquanto delegado da Fundação Oriente por duas vezes, de 1996 a 1998 e de 2007 a 2009], onde mantive um contacto estreito com os católicos indianos e a Igreja indiana, fizeram-me recordar o batismo e a doutrina. O ano passado (2015), um sacerdote católico interessou-se pelos meus livros e achou que se anunciava ali a presença de Cristo. Quando este sacerdote veio ter comigo, passámos várias semanas a encontrar-nos regularmente. Até que senti que era cristão, converti-me ao catolicismo e casei pela Igreja.»

Entre as reacções ao testemunho de Varela Gomes, conta-se a de João Taborda da Gama, o filho do ex-ministro Jaime Gama, actual secretário de Estado da Administração Local, que também se converteu ao catolicismo e que, na altura, escreveu uma crónica no Diário de Notícias em que sinalizou o impacto que sentiu ao ler aquelas palavras: «[U]m texto destes, é um murro. Não, como já ouvi, um murro na esquerda ateia ou agnóstica que não gostará de ver um dos seus maiores intelectuais falar de Deus, citar o Evangelho. Não. O murro é, em cheio, nos católicos, como eu, que falam mais do Jesus Jorge, do que do Jesus Cristo, que sabem mais de Matisse do que de Mateus. É um murro naqueles católicos, como eu, que tantas vezes já juraram a si e a outros, e fizeram que outros lhes jurassem a si, que quando a coisa vier, que vai ser rápida.»

Outros casos conhecidos são os de Henrique Raposo, cronista do Expresso, de Ricardo Quaresma, o internacional português, ou de João Ermida, o «banqueiro arrependido», que revelou como, aos 49 anos, entrou certo dia numa igreja, em Madrid, e decidiu pôr fim a uma carreira de 16 anos que lhe deu milhões a ganhar, nomeadamente enquanto responsável global da tesouraria e mercados financeiros do Banco Santander. Numa entrevista à Visão, em 2014, Ermida relatou o momento em que viveu uma epifania: «[P]ercebi que gastava dinheiro a mais. Levantava 300 euros no Multibanco e gastava-os em dois dias. Mas gastava-os em nada. Quando se começa a viver assim, olha-se para o dinheiro e deixa de ter valor. É a lógica de nos compensarmos de alguma forma. Um dia, saí da minha casa em Madrid, entrei numa igreja e falei com Deus. Disse-lhe: ‘Se cheguei até aqui, como é que me podes ajudar? Já não percebo o que estou a fazer.’ Sempre fui religioso, mas foi muito mais do que um re-encontro com a fé cristã. No dia seguinte, demiti-me.»

Ao Sol, Pedro Gil, director do gabinete de imprensa da Opus Dei, refere que se «é verdade que há pessoas que descobrem Deus a propósito de uma doença grave, ou numa peregrinação, ou num retiro», para outras isto acontece sem que nenhum acontecimento especial leve a isso. Não há, portanto, uma epifania concentrada num só momento. Mas Gil sublinha que «a conversão passa sempre por descobrir, com uma clareza interior nova, que somos dependentes de Deus». O responsável da Opus Dei frisa ainda que «essa clarividência, fresca e tranquilizante, vai normalmente acompanhada pelo desejo forte de rectificar o comportamento, lutando por contrariar a tendência, aliás impossível de eliminar por completo, para o autocentramento».

Vale a pena lembrar que o cristianismo só alcançou a expressão que hoje lhe conhecemos porque tem em si os elementos para ser uma religião tão aspiracional quanto consequente, tão revolucionária e abrangente na sua mensagem, que exige de cada um dos seus fiéis que não desligue a componente espiritual dos seus reflexos a nível político e social. Uma sociedade que fosse a expressão de indivíduos convertidos aos valores cristãos opor-se-ia, necessariamente, àquela em que vivemos.

De resto, é bom lembrar que uma das mais radicais e inesperadas conversões ao catolicismo, e certamente das que maior peso teve na expansão da fé cristã, foi a de Saulo de Tarso, judeu, membro de uma influente família romana, um homem precedido pela sua temível reputação, tendo-se destacado na implacável perseguição aos primeiros cristãos. Tinha consigo cartas das autoridades judaicas para trazer presos de volta a Jerusalém os cristãos que encontrasse no território onde fica hoje a Síria, e foi no caminho para Damasco que uma luz fortíssima o derrubou do cavalo. Sem poder ver, ouviu a voz de Cristo: Saulo, porque me persegues?

É o único homem cuja conversão não teve intermediários. Cristo dirigiu–se-lhe directamente, reclamando mais um apóstolo – São Paulo, aquele que viria a ser preponderante ao escrever uma série de obras em que assenta o cristianismo primitivo, bem como pelo papel que teve ao impulsionar o que, à época, não passava de uma seita herética no seio de Israel, contribuindo para que a mensagem do Evangelho se propagasse através da corrente sanguínea do Império Romano.

Nestes dois mil anos que nos separam daquele momento catalisador,  a intensidade da missionação arrefeceu bastante. E vive-se hoje uma fase mais contemporizadora, com a Igreja Católica a assumir um papel apaziguador entre as diferentes religiões e credos. Abriu-se, assim, margem para que as questões da fé possam voltar a resguardar-se na intimidade de cada um, alimentando menos o conflito entre os homens e antes o conflito dos homens consigo mesmos. Um juízo que antecede aquele que, para os crentes, está reservado para a hora da morte.