Dissonância democrática

A sociedade em geral começa agora a perceber aquilo que os investidores mais astutos detetaram há alguns meses atrás. Hoje é cada vez mais evidente que apesar da pompa de discursos sobre viragens de página e reversões, pouco mudou face aos últimos anos na substância da gestão do Estado. A alternativa que muitos alegavam ter…

A sociedade em geral começa agora a perceber aquilo que os investidores mais astutos detetaram há alguns meses atrás. Hoje é cada vez mais evidente que apesar da pompa de discursos sobre viragens de página e reversões, pouco mudou face aos últimos anos na substância da gestão do Estado. A alternativa que muitos alegavam ter sido validada pelos indicadores recentes, não foi mais que um espetáculo de ilusionismo que procurou esconder a maior reversão que as esquerdas operaram – a reversão conceptual do programa que prometeram. A cortina de fumo começa a dissipar-se e a pôr a nú a extensão do corte de despesa. Esta inversão de marcha foi obviamente bem-vinda, possibilitando ao país prosseguir rumo à saída do PDE e a caminho do upgrade de rating, percurso que contribuiu decisivamente para o alívio das taxas de juro.

É quase surreal denotar que partidos de índole marxista, que cronicamente apregoam as vantagens de choques keynesianos, possam ter aprovado no orçamento de 2016 a possibilidade de cativar até 1733 milhões em despesa pública. Este valor materializou-se em 943 milhões de cativações efetivas – o valor mais elevado de sempre. Curioso também verificar que foi esta maioria que executou um brutal esmagamento do investimento público de quase mil milhões de euros. Com esquerdistas assim, quem precisa de ultra neoliberais?

Esta realidade veio recentrar o debate económico do país no essencial – não se queremos ou não consolidação orçamental (vulgo austeridade), mas qual a melhor forma de a aplicar para limpar os desequilíbrios acumulados no passado. A austeridade de esquerda trocou grande parte dos cortes em salários por cortes nos recursos atribuídos aos serviços – os mais cínicos dirão que os primeiros votam e os segundos não. 

Neste contexto, surgem questões cruciais para o cidadão refletir. Será o corte de investimento público equivalente a uma dívida futura por via da depreciação? Em vez de colocar um garrote nos serviços, deveria o Estado considerar formas de garantir a prestação do serviço tomando ele a função de regulador? Será esta fórmula mais socialmente justa considerando as regalias que os funcionários públicos têm sobre o setor privado em termos de proteção laboral e pensões? Ou será esta a forma de empenhar os serviços num esforço de eficiência, ao pôr salários e recursos num registo mutuamente exclusivo? Era bom que o debate político assumisse estes tradeoffs com franqueza.

Portugal continua assim, com mais ou menos ruído, rumo ao modelo económico que foi recalibrado durante o ajustamento – um modelo de pequena economia aberta assente em equilíbrio orçamental, captação de investimento estrangeiro e exportações. Posto isto, resta-nos concluir que já nem a nossa esquerda radical acredita no modelo de procura interna keynesiano. Esperemos agora que o desvendar do truque de ilusionismo não cause desespero entre as hostes mais extremadas ao ponto destas se sentirem forçadas a iniciar reais reversões nas reformas mais relevantes ao nível do mercado laboral e imobiliário. Já basta não se aproveitar a bonança conjuntural para se fazer mais, mas como vemos, o ‘não estragar’ já tem sido bastante positivo para a nossa economia.

*Gestor de portfolio multi-activo no BIG – Banco de Investimento Global