Uma absurda nostalgia de cabos-de-mar

Figuras antigas das praias que já não há. Os polícias do futebol de areia e da exposição dos corpos. Os banheiros dos mergulhos forçados a crianças chorosas. 

Lobo. Lobo do mar, portanto.

Joaquim Bernardo Sousa Lobo, nascido em Ílhavo, pelo ano de 1854. Cabo-de-mar na Nazaré anos e anos a fio. Patrão do barco salva-vidas N.ª Senhora dos Aflitos.

Todos conhecem as aflições do mar.

«Quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?», perguntava Pessoa, n’A Mensagem.

O mar das lágrimas.

Crianças aflitas mergulhadas à força nas ondas irritadas. Os velhos banheiros que levavam o nome a sério. Banheiro é de banhar. Alguns riam-se, outros fugiam. O som dos meninos ao longe em brincadeiras de preia-mar.

Conta a história da Autoridade marítima Nacional: «Após o fim da 1.ª Guerra Mundial, a especificidade das atividades ligadas à navegação, a maior densidade da aplicação das respetivas normas nas zonas portuárias e marítimas, e a necessidade de fazer cumprir um conjunto de disposições e determinações dos capitães dos portos quanto à visita de navios e embarcações, e segurança da navegação induziram a necessidade de criação de um Corpo da Polícia Marítima (CPM), o que ocorreu, de início, no Porto de Lisboa, a 13 de setembro de 1919 pela Lei n.º 876».

Era disto que eu queria falar.

Para lá dos banheiros levando os banhos infantis como obrigações. Cabos-de-mar. Polícias de um futebol de areia: criminosos correndo cada um para seu lado, escondendo a bola para lá das dunas.

Parece que incomodava excessivamente as senhoras que, de pés enfiados na rebentação mínima das vagas, água pelos tornozelos, cuidavam, palrando, das varizes.

Havia uma lei para os cabos-do-mar, vigilantes conscienciosos do pudor. raparigas aconselhadas a colocar a parte de cima do biquíni. As estrangeiras, vindas lá do norte, da Alemanha, da Dinamarca, da Suécia, estranhavam. Venha de lá o tapa-seios! Homens suando na sua farda mal cuidada à chapada do sol a pino.

Isso mesmo: cabos-de-mar.

A malta facilitava o nome: cabos do mar. Largava chalaças. Mas não há sargentos do mar, tenentes do mar, capitães do mar? Só cabos? As praias não mereciam oficiais?

E eles, impávidos, vigiando pelo canto do olho o grupelho de moços que se fazia distraído, esperando o momento de os ver de costas para continuar a peleja. Pontapés no ar de chuviscos de areia sobre corpos escaldantes, dourados de óleos, brilhando sobre o turco das toalhas multicores.

O decreto

A lei definiu o Corpo da Polícia Marítima: «Constituído por cabos-de-mar encarregues de fazer o policiamento das áreas das Capitanias dos Portos, as funções do CPM foram definidas pelo Decreto n.º 7 094, de 06 novembro de 1920, sendo criado, ainda nesse ano, pelo Decreto nº 6 273, de 10 de dezembro, o Corpo da Polícia Marítima do Porto do Douro e Leixões, sendo atribuídas a este Corpo de Polícia de especialidade inúmeras missões de fiscalização e de investigação».

A lei definia os cabos-de-mar e os cabos-de-mar eram a lei.

Generais de areia num comprimento de quilómetros. Lá do fundo, onde ninguém vigiava ninguém, até à zona dos toldos e das barracas que se erguia no sopé da Bola de Nívea, local prioritário de encontros.

A Bola de Nívea que também já não há.

As praias de hoje parecem sentir a falta daquelas figuras empertigadas, para cá e para lá em caminhadas incessantes, paralelas ao mar. 

As praias de hoje também perderam os altifalantes que anunciavam meninos perdidos à espera de pais distraídos nas cabinas-de-som. E as barraquinhas de pronto-socorro que aliviavam as solas dos pés da assassina mordedura do peixe-aranha.

 Acima e abaixo no areal mole que ferve. Não precisavam de andar aos saltinhos, soltando exclamações irritadas, porque andavam militarmente calçados, vigiando a legalidade da ondulação atlântica, de olhos postos nas contravenções do vento norte, nunca descurando os abusos das gaivotas sempre prontas a esvoaçar perigosamente à margem das regras sociais. 

Até onde ia o poder de um cabo-de-mar? Provavelmente era infinito, como o de um capitão-de-areia. 

Joaquim Bernardo Sousa Lobo foi um dos primeiros cabos-de-mar, ainda no tempo de antes da lei que fundou o posto. Cabo-de-mar era designação aceite pelo povo. Lobo: talvez o mais famoso. Aos 12 anos já andava na Terra Nova, a bordo de um baleeiro, na busca do bacalhau. Louvores em barda. Cavaleiro de Torre e Espada. Bem mais do que cabo-de-mar – marechal-de-mar! 

A farda fugidia por entre a multidão de corpos despidos; silhuetas escuras recortadas de encontro ao anil do céu. E, de repente, soltavam-se da brancura da areia para, num gesto autoritário que não dava direito a recurso, apreenderem a bola inocente, objeto hediondo de um crime inaceitável de caneladas a sangue frio.

A malta nova não gostava de cabos-de-mar.

Agora, que eles desapareceram, a malta nova envelheceu. Ouço, nas conversas de esplanadas, uma nostalgia absurda de cabos-de-mar.

Mar em correntes

Incapaz de se recordar do nome de todos os seus afogados.

Mar salgado; mar português.

Fernando Pessoa não gostava de praia no seu fato negro e chapéu soturno.

Garotos assustados a esconderem os ringues e as bolas grandes de gomos debaixo dos guarda-sóis protetores das mães. Os vendedores de Olás fresquinhos, de pastéis de Tentúgal e de bolachas americanas preocupados com as licenças dessa tradição lusitana de orlas ocidentais: desviando as trajetórias num temor reverencial, calando os pregões, puxando para cima dos olhos as palas dos bonés. Os banheiros atarefando-se em coisa nenhuma para mostrarem serviço, esticando a vista sem descanso num apetite súbito de náufragos.

Não há cabos-de-mar no horizonte.