Daniel Fortuna do Couto: “Houve centenas de engenheiros a tirar cursos de Arquitetura”

O parlamento vota amanhã um projeto de lei que reabre a arquitetura a alguns engenheiros. A Ordem dos Arquitetos já apresentou uma petição de contestação e denuncia a chico-espertice de quem não apostou em formação

Engenheiros a assinar projetos de arquitetura para monumentos? É o cenário em cima da mesa com o projeto de lei do PSD que vai ser votado esta semana no parlamento, avisa a Ordem dos Arquitetos. Daniel Fortuna do Couto, vice-presidente da Ordem, fala de um “retrocesso democrático” que vai mais longe do que recuar na separação das águas que aconteceu em 2009. 

Os engenheiros reclamam o cumprimento da legislação comunitária, que reconhece o título de arquiteto a pessoas que tenham entrado para Engenharia Civil em quatro universidades até 87/88. Quais são as principais objeções dos arquitetos ao projeto do PSD?

Dizer-se que está em causa a transposição de uma diretiva é uma falácia. Na altura foram identificados os títulos de formação de arquiteto que beneficiam dos direitos adquiridos, mas a própria diretiva [de 2005] diz que inverter o processo, ou seja, usar essas habilitações para reconhecer a atividade no próprio Estado-membro, está fora de aplicação. 

Mas qual é o sentido de haver o reconhecimento de direitos só para atividades noutros países?

O sentido era regular a mobilidade entre os Estados-membros. O facto de se chamar Engenharia na Bulgária não significa que os cursos de Engenharia lá tenham as mesmas cadeiras de arquitetura que os cursos em Portugal, daí a necessidade de reconhecer formações. O que se passou foi que, em Portugal, desde 2009 passou a estar vedado aos engenheiros fazer projetos de arquitetura, exceto num período de transição de oito anos – que termina no final deste ano. Nos últimos três anos houve determinadas regras – os engenheiros passaram a ter de estar inscritos em cursos de arquitetura e ter feito projetos nos últimos cinco anos.

Quantas inscrições tiveram na Ordem de engenheiros que acabaram por se formar como arquitetos?  

Serão centenas de casos e houve cursos específicos para atualizarem a sua formação. Aquilo a que estamos a assistir agora é a um grupo que se diz ser de 200 engenheiros – mas que ninguém sabe quantos são – que procura ser reconhecido com base num chico-espertismo.

À parte da diretiva, até 2009 exerciam legalmente as suas atividades. Não teme que as vossas objeções sejam vistas como corporativistas?

Há sempre essa possibilidade, mas isso é ignorar o processo legislativo. Não queria usar casos extremos, mas assinalámos recentemente os 150 anos da abolição de pena de morte. Quando foi abolida, os carrascos deixaram de ter trabalho. Foi abolida em Portugal a possibilidade de os engenheiros fazerem projetos de arquitetura. Para que eles se adaptassem foi-lhes dado um período de transição de cinco anos. Ao fim deste período foram dados mais três anos de transição, o que vai ao encontro de toda a jurisprudência de como se cessam direitos adquiridos. E quer-se agora revogar aquilo que foi um avanço.

Nesse exemplo extremo que deu, havia o valor maior da vida. Neste caso, qual foi?

A arquitetura, a paisagem, o território. É tão só o que tem mantido Portugal a sair da crise.

Apontar a culpa aos engenheiros não será uma generalização?

A culpa não é só dos engenheiros, é essencialmente da pouca formação com que se tratou os processos urbanísticos durante demasiados anos. Foram os engenheiros, foram alguns arquitetos, foram os políticos. Foi toda uma conjuntura que levou ao desordenamento do território e que foi a desgraça da nossa paisagem. O que a sociedade portuguesa quis foi qualificar os profissionais para que se respeitasse o património. Isso aconteceu em 2009 e é por isso que dizemos agora que querer voltar atrás é um retrocesso democrático.

Mas já veem efeitos da mudança da lei em 2009?

Toda a reabilitação das nossas cidades e obras novas têm tido ganhos de qualidade que têm levado a mais reconhecimento internacional e interno.

Sempre houve arquitetos distinguidos, temos dois prémios Pritzker.

Eram casos isolados. Hoje exportamos arquitetos para o mundo todo. Os arquitetos portugueses são reconhecidos do Qatar à América do Sul, do Japão a Londres

Usando a expressão coloquial, também se veem “mamarrachos” assinados por arquitetos. 

Em todas as profissões há sempre os melhores e os menos melhores.

O que faz de um arquiteto, por defeito, melhor?

Todo um leque disciplinar que os engenheiros não dominam. Os engenheiros têm cadeiras durante o curso que lhes permitem dominar o desenho de arquitetura. Sabem desenhar uma fachada como eu sei desenhar um coração. Mas isso não faz de mim um cardiologista. E, portanto, também não faz deles arquitetos. O arquiteto é, por natureza da sua formação, aquele que desenha o espaço e isso não está ao alcance de qualquer outro curso ou formação. São universos conceptuais distintos.

Engenheiros e arquitetos devem trabalhar em parceria. Este clima de guerra não é prejudicial?

Não me parece que esteja a minar-se de todo essa parceria porque não há um clima de guerra. O que temos é uma disputa entre alguns engenheiros que pretendem ganhar na secretaria, com o apoio inexplicável da Ordem depois todos os outros engenheiros que não concordam com isso. Basta ir à página de Facebook da Ordem dos Engenheiros para ver uma discussão em que são os próprios engenheiros a questionar por que motivo se quer voltar atrás no tempo. A arquitetura é para os arquitetos e a engenharia para os engenheiros, e têm de trabalhar em complementaridade.

A redação do projeto de lei levanta mais dúvidas?

Há uma questão de princípio que não podemos aceitar, mas depois há varias questões de forma. Quando se diz que até 2009 os engenheiros faziam arquitetura também não é verdade. Desde 1988 estavam excluídos de trabalhar em tudo o que fosse património  e não podiam fazer arquitetura ou desenho em tudo o que fosse edifícios relacionados com turismo, restaurantes, hotéis.

Isso mudaria agora?

Com esta redação do projeto de lei passam a fazer tudo e mais alguma coisa. Não se admire se no final do ano um engenheiro puder assinar a remodelação do mosteiro dos Jerónimos ou da Batalha. Nem eles acham que têm formação para isso, mas com a redação que está no diploma dá origem a isso. Era quase uma separação do universo da arte do da técnica, mas com esta redação isto passa a ser possível. O articulado diz apenas que passam a poder elaborar projetos de arquitetura os engenheiros civis a que se refere o anexo da diretiva.

Expuseram esta situação à comissão parlamentar?

Já expusemos todas as situações possíveis e imaginárias, quer no plano político quer no plano jurídico. 

Por exemplo?

A Constituição fala do princípio da confiança. O Estado não pode mudar de um momento para o outro as regras, tem de dar tempo para as pessoas se adaptarem. Foi o que aconteceu em 2009. Estes engenheiros que agora querem as suas habilitações reconhecidas não se adaptaram, mas houve outros que o fizeram. Para esses, o Estado ao aprovar esta lei estaria a quebrar o princípio da confiança e o princípio da igualdade. Estes engenheiros que reclamam este direito entraram na faculdade até 87/88. Nos anos seguintes os currículos não mudaram. O que distingue perante o Estado um engenheiro de 1987 e um engenheiro de 1990? Abre-se uma caixa de Pandora: os cursos eram exatamente iguais. Se isto for aprovado, logo a seguir virão todos os outros engenheiros que se formaram depois questionar porque é que os outros são especiais.

Lançaram uma petição que vai nas 14 mil assinaturas e teve Souto Moura e Siza Vieira como primeiros subscritores. Já a entregaram no parlamento?

Deu entrada a 3 de julho. Possivelmente não será discutida em conjunto com o projeto de lei.
Além da regulação profissional, defendem na petição a promoção da Política Nacional de Arquitetura e Paisagem.
O documento existe, não está é regulamentado. É um trabalho que transitou entre legislaturas e que requer atenção política.

Do ponto de vista da arquitetura, o que está errado no país?

Os arquitetos têm por missão antecipar as preocupações sociais relativamente ao património construído e a construir. E assim como antecipámos há 20 anos que todo o movimento social se iria voltar para o centro da cidade – e definimos como linha orientadora a reabilitação dos centros históricos –, hoje estamos muito preocupados com as periferias de expansão desregulada e abandonadas. É preciso dizer que esta capacidade de antecipação é responsável por muita da dinâmica que vemos hoje. No caso do Porto, de onde sou, são sementes que se plantaram com o Porto Capital Europeia da Cultura 2001 e que hoje estão a colher resultados.  

Que exemplos de abandono da periferia vos preocupam?

Todas as fábricas deslocalizadas para o estrangeiro e que deixaram carcaças urbanas e os problemas da expansão descontrolada de Porto e Lisboa para as periferias, em que o espaço público foi completamente desleixado. 

E como vê neste momento esse boom do turismo e alojamento local: ainda é uma oportunidade ou já é mais uma ameaça?

Como resultado de um aprofunda crise económica, os portugueses agarraram a única oportunidade que lhes apareceu. Todo o processo de gentrificação pode comportar excessos, mas é uma oportunidade. Talvez em Lisboa se esteja a ir demasiado longe, no Porto começa a haver sinais preocupantes. 

Que desfecho espera para a votação desta quarta-feira?
Que o bom senso prevaleça e que esta iniciativa legislativa que classifico de tonta não avance. Até porque os grupos parlamentares que vão votar este projeto de lei têm uma história que devem honrar. Todos participaram ativamente neste processo desde 2003.  

Só em 2009 se separam as águas. A situação é mais linear noutros países europeus?

Nos países do norte da Europa ninguém confunde, talvez por um nível de educação mais avançado, engenheiros e arquitetos. Apesar de não estar no papel, não se confunde. No sul da Europa está mais regulamentado, com as funções de uns e outros definidas.

A tentação histórica de recorrer a engenheiros será pelos arquitetos serem mais careiros?

Não sei se o arquiteto é mais caro do que o engenheiro porque não faço esses estudos de mercado e recuso-me a aceitar que os engenheiros façam projetos de arquitetura. Mas uma coisa posso garantir: a obra desenhada por um arquiteto não é mais cara do que a desenhada por um engenheiro. E é fácil perceber porquê: um arquiteto leva o desenho da obra ao detalhe e, portanto, tudo está muito mais previsto desde o inicio.

Há menos derrapagens?

Exatamente. A obra do engenheiro deixa tudo muito mais à consideração do tempo.

Os arquitetos não desenharão também coisas impraticáveis?

Não tenho essa experiência, mas somos 24 mil. Trabalho com vários engenheiros e, de cada coisa que faço, pergunto ao engenheiro se pode ser. E cada coisa que o engenheiro pensa que poderia caber no projeto também diz. Espanta-me este apoio que a Ordem dos Engenheiros decidiu dar a estas pessoas que têm uma visão anacrónica.

Não haverá também uma certa luta de classes: uma pessoa para tirar Arquitetura precisa de média de 16, 17 ou 18 e para Engenharia são médias menores.

Isso não existe. Aliás a prova de que não existe são estes mesmos engenheiros que querem os seus direitos adquiridos. Hoje as médias são mais altas, mas estes mesmos engenheiros que agora querem ser reconhecidos quando se formaram as médias eram mais ou menos equivalentes e ninguém escolhia por aí. Para ir para Arquitetura era mais ou dois valores e era porque havia menos cursos. Estamos a falar de um caso de exceção e de um parlamento que resolve dedicar parte do seu tempo no meio de coisas dramáticas como o incêndio em Pedrógão ou o roubo em Tancos a um grupo que devia ter usado o período de transição para fazer o curso e hoje estar a trabalhar como outros estão, em vez deste desenrascanço à ultima hora.