Simone de Oliveira. “É mais aflitivo andar hoje na rua do que antigamente. Às vezes só de burca”

O verão de Simone de Oliveira vai ser passado como sempre, em ensaios para um novo espetáculo. As baterias, carrega-as com a família e… bordados. Mas adora praia – dava jeito era um teletransporte

Decidimos que estas conversas de verão serão os nossos estivaneios.

[risos] Os meus estivaneios não são estivaneios nenhuns, meu amor. Começo a ensaiar um musical que tem o meu nome no Tivoli a 1 de agosto. Vai ser um verão ocupado.

Foi sempre assim?

Nunca tive aquilo de dizer “vou de férias 15 dias”. Quando os meus filhos eram pequenos, ia ter com eles à Ericeira e com os meus pais, mas dizer que íamos de férias para algum lado, isso não.

Os miúdos ficavam chateados?

Não. Ficavam os meus pais.

Lisboa no verão era um sossego, agora menos.

Não me fale de sossego em Lisboa… moro aqui perto da rua da escola politécnica (Príncipe Real) e é um desassossego. Acho que Lisboa foi invadida no bom sentido da palavra, mas só espero que não nos tirem aquilo de que gostávamos tanto. Agora as minhas férias de verão são ir à praia, comer umas sardinhas com a minha filha. Nunca tive muito tempo. Comecei a trabalhar aos 19 e tenho 79… ando há 60 anos nisto. E onde fui, foi sempre a trabalhar. Estive uma vez no Brasil uma semana de férias, fui com uma amiga… disse-lhe assim: “vou fazer de conta que sou um bocadinho rica”.

E vale a pena a praia do Brasil?

Nesta altura não ia, isto foi há dez anos ou 12. Temos coisas tão bonitas em Portugal para ver. Fui a muitos sítios a trabalhar, o que quer dizer que sobretudo vi o teatro, a orquestra, o microfone e depois dávamos uns passeios.

Se não tirava férias a sério, onde carregava as baterias?

Olhe isso ando eu a perguntar a mim própria. Vim agora da médica e ela diz-me a mesma coisa. “Simone, vamos perceber que a menina não tem 50 anos, mas está a trabalhar como se estivesse. Vamos abrandar”. E eu pergunto como? “A Simone é que se sabe”. Olhe, leio. E gosto muito de bordar. Bordo a ponto cruz. Fiz uma toalha de jantar para a minha filha, outra para o meu filho e outra para o meu neto mais velho. Fiz o elevador lá de baixo do Bairro Alto a ponto cruz para pôr num quadro.

Não se imagina a Simone a bordar no sofá como as senhoras de antigamente.

Não é no sofá, é na mesa e com luz por cima. Gosto mesmo. Fiz uma janela do Bairro Alto para outro neto, está lindo de morrer. E agora estou a fazer para o mais novo uma chaminé do Algarve.

Noutro dia passei por si já noite no Bairro Alto. Gosta de passear à noite?

Eu sou a tal senhora que vai há 30 anos ao mesmo restaurante e tem uma cadeira com o seu nome. 

Qual é o restaurante?

“Põe-te na Bicha”, na Travessa da Água da Flor, n.º36, onde me tratam muito bem e tenho grandes amigos. Descanso muito lá. Toda a gente sabe que sou viúva há mais de 20 anos. Vivo na mesma casa, sozinha. Almoço e janto com um tabuleiro à frente do televisor. Sou uma assistente de televisão bastante assídua mas na base do Fox Crime, Fox Life, da National Geographic.

Gosta de “Guerra dos Tronos”?

Não é por aí. Gosto daquelas coisas que começam e acabam e a gente sabe, pronto. Não tenho paciência. E depois é ler. Estou a ler o último livro da Alice Vieira que é lindo. Minha querida Alice, um beijo. Adoro a Alice e é imperdível. Agora voltando ao restaurante, cozinho muito bem, mas cansei-me. Compro comida feita ou mando vir que a filha da minha mãe com quase 80 anos não está para andar no meio de tachos e panelas.

Que prato é que lhe pediam sempre?

Pastéis de bacalhau com arroz de grelos. Tenho uma frase de um dos meus netos mais velhos: “avó, isto é Deus dentro de um pastel”. Foi a coisa mais engraçada que me disseram.

O verão da “Desfolhada”, 1969, foi o mais louco?

Foi o verão em que eu perdi a voz. Foi um ano extraordinário, ganhar o festival, cantar, cantar e cantar e depois perder a voz. Estive três anos sem cantar.

Sentiu ter ido ao limite, mas não guarda mágoa.

Costumo dizer que me fez muito bem perder a voz. Se eu não tivesse perdido a voz de menina dos festivais, não tinha deixado de ser a menina dos festivais. Tive de aprender a cantar de outra maneira, a respirar de outra maneira.

E ficou com esse vozeirão.

Tenho aulas de voz há quatro anos com o meu grande amigo Luís Madureira, uma vez por semana. Ele pára os ensaios e eu pergunto: “o que se passa, está mal?”. E ele: “não, não sei como uma mulher da sua idade tem essa voz e essa afinação”. Eu também não sei…

Canta sozinha em casa?

Não, não. Nem canto sozinho nem vale a pena pedirem “canta lá uma cantiga”.

Que música gosta mais de cantar?

Gosto muito de fazer os concertos com o Nuno Feist. Gosto muito de cantar com a banda do David Antunes, com o FF, com a banda da Marisa. Sou assim eclética, uma senhora de idade assim um bocadinho adoidada.

Era muito assediada quando ia à praia, sobretudo depois da Desfolhada?

Era um bocadinho. Depois quando comecei a ter netos, e eram quatro, faziam barreira. E tenho dois filhos com uma cara que não ajuda nada. 

Mas evitava ir a determinados sítios?

A certa altura as pessoas habituavam-se. Os meus filhos aprenderam a nadar na Praia da Mata na Costa da Caparica, com um banheiro. Íamos todos. O Carlos do Carmo estava num lado e eu estava noutro. A partir dos primeiros três ou quatro dias as pessoas deixavam de ligar. Hoje é mais aflitivo eu andar na rua do que era nessa altura, por muito estranho que pareça. Às vezes só de burca [risos].

Hoje as pessoas se calhar querem mais fotografias, mais selfies…

É isso e depois verem aquela mulher que continua a cantar, a minha frontalidade. Sou muito frontal e às vezes não sou mais porque roça um bocado a má a educação. É a minha violência perante aquilo que não sou capaz de perceber. Então agora temos generais que roubavam as messes? Não cabe na cabeça de um mortal, não cabe na minha.

Está muito perplexa com os casos que têm vindo a suceder-se no país?

Completamente perplexa.

Apanhou outros sobressaltos do país, sente que é cíclico? 

Acho que este desnorte está a ser um pouco a mais. Não consigo entender. Com certeza a liberdade é uma coisa brilhante que conseguimos à conta de pessoas que não eu, que nunca estive ligada à política. Mas costumo dizer que a minha alma nasceu livre. Saí de casa, casei-me, divorciei-me, casei-me. Mas hoje, eu não entendo. Temos tudo para ser um país maravilhoso, temos uma gente… e de repente caem do céu aos trambolhões aquelas instituições em que nós acreditávamos. E pensamos assim: “e agora, é suposto acreditarmos em quê?”. Quero acreditar que é algo que vá passar, que vai melhorar, mas ó senhores, arranjem lá quem leve isto a direito. Depois não se pode falar… lei da rolha outra vez não.

O assunto do dia.

[risos] Está a ver, sou muito atenta ao que se passa.

O primeiro biquíni foi um escândalo? Teve de pedinchar muito aos pais?

Não, nada…

Eram permissivos?

Ter esta filha para os meus pais deve ter sido uma dor de cabeça muito grande. Também nunca fui muito de biquínis, aliás continuo a achar que uma mulher fica muito mais bonita de fato de banho. Ou então tem de ter realmente um corpo escultural. Mas as pessoas são livres de escolherem o que quiserem.

Mas a Simone sempre foi um mulherão.

Olho para as minhas coisas na RTP Memória e não me faz impressão nenhuma. Tenho uma saudade muito lavada… não é aquilo “ai que saudade”. Olho e penso: “a mulher não estava nada mal”, mas é aquela mulher, que foi dando lugar a esta. Foi passando o tempo, foram aparecendo as rugas, com uma certa preocupação de não estar mal.

Mas fazia ginástica?

Eu tenho lá paciência para ginástica.

Subir o Bairro Alto para casa já é ginástica.

Agora não subo, tenho lá idade. Mas subi sim, muitas vezes, as escadinhas todas. Até aos 71 ou 72 ainda me levantava e ia sozinha de manhã para a praia, normalmente para a Costa da Caparica do lado direito, São João. Ia às oito da manhã, abria a praia.

De transportes?

Ia de carro, sempre tive carro desde miúda. Agora não me apetece, já dei para isso. Adoro ver as pessoas na praia… eu queria mesmo era aparecer na praia. Querer ir e já lá estar.

Teletransporte, portanto.

Isso é que era bom. Pensava que queria ir e já lá estava deitada na areia. Agora sair de casa, meter-me no carro, estacionar… ou então era ir para um bom hotel, está tudo ali, ninguém me maça. Mas como tenho trabalho, fico por aqui, é melhor levar isto com calma. Vou jantar a uma esplanada bonita e chega. Adoro o mar.

Era tipo pato dentro de água ou mais moderado?

Não, era mergulhar, não nado mal, mas era para cima e para baixo.

E bolas de Berlim?

Nem por isso, não sou muito de doces. O único bolo que como de vez em quando é um pastel de nata. Sou muito mais amante de um bom queijo, de um pastel de camarão. Bolos não, nem bolos nem chocolate. As caixas de chocolates de natal ficam por aí e depois coitadinhas…

Qual é a memória mais bonita que tem à beira mar?

Das grandes passeatas que dei com os meus dois netos mais velhos e o Varela. Na Costa, ficávamos cada um na sua toalha e ele a contar histórias… as pessoas paravam para o ouvir.

Nunca perdeu tema de conversa com o seu marido?

Não… ele tinha uma capacidade inventiva. Eram conversas sobre tudo, o que íamos fazer, o que era o jantar, o que estás a ler, o que não estás a ler. Era um grande conversador, um grande contador de histórias. E quando não tinha nenhuma inventava.

Imagino as saudades.

Tenho muitas saudades. E se eu me lembrar que faz agora em novembro 21 anos…

A saudade aumenta com o tempo?

Eu apaziguei. Durante os primeiros três ou quatro anos foi um horror. E depois, foi como aconteceu com a minha mãe e o meu pai. Vamos vivendo das memórias, sobretudo das boas. Há quem perca a noção da voz, da pessoa. Eu tenho a voz do Varela, da minha mãe, do meu pai, dos meus avós, tudo na minha cabeça. Há pessoas que têm uma ideia vaga, eu não. Tenho uma ideia absoluta. Tenho-os muito presentes. Conto histórias e estou a vê-los.

Por exemplo?

Uma grande discussão da minha mãe com uma empregada que nós tivemos por causa de um pargo. Não era um pargo legítimo, era um pargo mulato. Choravam as duas. A Benvinda a dizer que se ia embora, a minha mãe no quarto e eu sem pachorra. De vez em quando lembro-me desta história. Como do meu pai, que sempre que havia cozido à portuguesa perguntava se havia farinheira e nunca tocou na farinheira. A Benvinda respondia sempre “com certeza que tem farinheira”. E a farinheira ficou sempre no prato. Vá a gente perceber isto.