“Nunca ao domingo”. Liberdade, mitos gregos e uma canção popular

O filme que Jules Dassin criou para a sua mulher, Melina Mercouri, é homenagem ao teatro grego e comédia sobre o que é isto de viver

A linha que separa a comédia da tragédia é menos forte do que poderíamos pensar. E o riso pode ser arma para enfrentarmos o mundo como o choro maneira de nos libertarmos da dor. Por exemplo, Jules Dassin à procura da verdade para a decadência do mundo faz uma comédia pelos caminhos da tragédia, numa Atenas do porto (Pireu), das prostitutas, das tabernas, da pobreza orgulhosa e da alegria das pequenas coisas.

Com a sua mulher Melina Mercouri no principal papel – o de Ilya, a prostituta feliz que traz a felicidades aos outros, enamorada pelas tragédias gregas com as quais constrói na sua cabeça histórias lindas de final comovedor –, o realizador e coprotagonista acaba por criticar aqueles que do alto da sua sabedoria intelectual e académica se transformam em arautos da verdade e únicos capazes de ter do mundo a sua visão genuína.

Homer – assim batizado por um pai apaixonado pela Grécia antiga –, turista americano e filósofo amador à “procura de encontrar a verdade” sobre a infelicidade do mundo, usa Ilya como símbolo da sua indagação e exemplo para a queda da Grécia e a decadência da civilização. “És a beleza do que era a Grécia. És todo esse mundo: belo e corrupto”, afirma Homer do pedestal da sua intelectualidade, desde onde se permite afirmar tudo, porque não há verdade sem honestidade brutal.

Ilya é feliz, mas Homer acha que ela só é feliz por ignorância. E, com toda a generosidade do intelectual bem intencionado, propõe-se ensinar-lhe toda a verdade, sem ter em conta que a mesma forçosamente trará com ela a infelicidade da mulher que tenta “salvar”. Homer ajuda Ilya a atravessar a rua para chegar à verdade mesmo quando esta nem sequer sabia que havia uma rua para atravessar.

Um parêntesis para salientar como a busca da verdade para a tristeza do mundo acaba a condenar alguém à tristeza por ser essa a verdade do mundo.

Na divertidíssima cena da taberna, logo no princípio do filme e da jornada deste Homero da verdade, o turista-filósofo permite-se aplaudir entusiasmado a dança do bêbado, num primeiro choque de culturas: de um lado alguém que dança para si, para a sua alma, algo pessoal e intransmissível; do outro, o estranho que só entende a expressão pública como procura de aprovação exterior, vindo de um país onde o pessoal é quase sempre transmissível.

Dassin, o autoexilado americano na Europa, cansado do peso cerceador de filmar em Hollywood, da indústria dos estúdios habituada a pôr na ordem quaisquer veleidade artística dos realizadores, sabe de que lado quer estar nesta comédia de costumes, onde quem procura a verdade, mente, e quem se ilude, a verdade diz.

Além da grande interpretação de Mercouri, num papel feito à sua medida e que a própria disse em muitas entrevistas ser o melhor da sua carreira – e lhe valeu o prémio de interpretação em Cannes e a nomeação para o Óscar de melhor atriz (que perderia para Elizabeth Taylor) –, há outro aspeto essencial, a banda sonora, principalmente a canção de Manos Hatzidakis.

“Ta paidia tou Peiraia” (As crianças do Pireu, que teve também uma versão em inglês muito difundida e interpretada, “Never on Sunday”), cantada por Mercouri no seu quarto, envolta num robe de cetim e com a fotografia da equipa do Olympiakos em grande destaque na parede, é o momento mais emocionante do filme, súmula daquilo que Ilya é e representa: uma mulher do povo, simples, forte, livre que ama e quer ser amada.