A servidão ideológica…

Pode um partido político português ser indiferente à sorte de milhares de compatriotas imigrados na Venezuela, sujeitos a um regime em desespero? 

Pode. Chama-se Partido Comunista Português, faz parte da coligação parlamentar que sustenta o Governo ‘remodelado’ de António Costa e não se cansa de cantar hossanas em louvor da ‘revolução bolivariana’, num absoluto desprezo por uma comunidade de meio milhão de pessoas, com um histórico de várias gerações naquele país.

Incapaz de distanciar-se do poder fundado e instalado em Caracas pelo ‘chavismo’, com consequências dramáticas para a população, o PCP voltou a afirmar-se solidário com o Governo de Nicolás Maduro.

E fá-lo em termos que convocam o jargão utilizado pelos comunistas durante o PREC, a seguir ao 25 de Abril.

Sabem que estão a ser cúmplices de um regime autocrático, em flagrante desrespeito pelas liberdades fundamentais, silenciando a oposição e os media que não lhe obedecem. Mas é a sua natureza.

O PCP não tem emenda. À falta de ‘companheiros de luta’ em Espanha, França ou Itália, perdeu a vergonha ao colar-se a Maduro e ao ‘reinado’ demencial da Coreia do Norte. Sobrevive pendurado na órbita da governação, como ‘boia’ de socorro de António Costa, embora ultrapassado pela esquerda urbana e ‘bem pensante’ liderada por Francisco Louçã.
Graças a esse contorcionismo, recuperou alguma força que estava a perder nos sindicatos, desde a Função Pública aos transportes.

O bónus do PS permitiu ao PCP segurar a CGTP, em perda acelerada de afiliados, materializando a aliança que Cunhal sempre quis e Mário Soares recusou. 

São boas razões para Jerónimo estar grato a Costa pelo ‘arranjo de conveniência’. Retribui-lhe em complacente ‘período de nojo’, amparando-o nas aflições recentes em Pedrógão Grande e Tancos, ou relativizando o infortúnio que se abateu sobre os portugueses na Venezuela. Não é pouco. 

Em conversa com o Observador, António Barreto citava o PCP e o BE, e reconhecia que «o que quer que se faça com estes dois partidos é sempre (…) mais um passo para chegar ao mesmo sítio. E esse sítio é ‘não Europa, não euro, não NATO, não democracia conforme a conhecemos’». 

Barreto pôs o dedo na ferida. E recordou que, anteriormente, «quem impediu essa coligação foram os socialistas (…), incluindo o António Costa que, durante vários anos, era um dos porta-vozes do PS, do PS democrático, do PS europeu, contra o PS de coligação à extrema-esquerda». 

Ou seja: António Costa mandou ‘às urtigas’ o passado e a coerência. A sua reputada ‘habilidade política’ esgota-se nos jogos de salão e na fuga aos problemas. 

Aliás, no recente debate sobre o Estado da Nação, desvalorizado pelos principais media, a ‘remodelação’ do Governo foi uma ‘dança de cadeiras’ de contornos baços.

Mais tarde, Costa ressuscitaria a tecla da «humildade», ao intervir num comício autárquico em Fafe. Para quem nunca foi capaz de pedir desculpa pelo falhanço do Estado em Pedrógão e em Tancos, dizer agora que, quando «os imprevistos surgem, a atitude correta não é a de demissão», cheira a justificação esfarrapada. 

De facto, os episódios posteriores ao regresso de Costa de férias foram tão bizarros e controversos que legitimam a dúvida sobre a perceção que ele tem sobre a lucidez dos portugueses.

Um dos sinais preocupantes desse ‘estado da arte’ é a forma como se mente, se diz e desdiz, e se omite. Outro, o volte-face de generais, antes de qualquer inquérito concluído. 

Não há memória de algo parecido. Entrou-se na política do ‘vale tudo’, desde Pedrógão Grande a Tancos, até ao bloqueio em apurar responsabilidades pelo descalabro da CGD. 

Este Governo serve de ‘muleta’ à esquerda não democrática para ganhar o aparelho do Estado. Há uma ‘servidão ideológica’ que domina a ‘geringonça’ e funciona em pleno, em questões onde os comunistas não vacilam. 

É o caso da Venezuela. Apesar da repressão generalizada exercida por um poder autoritário, correram rumores de que Portugal seria o ‘empecilho’ à unanimidade nos estados membros da União Europeia para a eventual aplicação de sanções a Caracas, no caso de vingarem as alterações à Constituição venezuelana pretendidas por Maduro para se perpetuar. 

A notícia veio no El País, desmentida em comunicado ambíguo do nosso MNE. A linguagem diplomática escamoteia o comportamento timorato de Portugal nesta matéria. 

Bem mais frontal foi o grande maestro Gustavo Dudamel, num artigo publicado no mesmo jornal, em que defendeu «uma Venezuela democrática para todos» e reconheceu os «dias cruciais» que se vivem no seu país, apelando «encarecidamente ao Governo venezuelano que suspenda a convocatória da Assembleia Nacional Constituinte». A sua coragem cívica contrasta com a cobardia de outros.