A profecia de sebald

Por algum motivo que não sei explicar muito bem – talvez a pintura de Goya Saturno Devorando os seus Filhos tenha desempenhado algum papel nisso – tudo o que diga respeito a Saturno desperta em mim um estranho fascínio. 

Se procurar nas estantes de minha casa, encontrarei pelo menos cinco obras com a palavra Saturno no título (e ainda um livro de poesia que ostenta a pintura de Goya na capa).

Um desses livros é Os Anéis de Saturno, de W. G. Sebald, um dos grandes escritores europeus das últimas décadas.
Na mitologia, Saturno é o equivalente do grego Cronos, o deus do tempo, que acaba por destruir aquilo que gera (daí o quadro de Goya). É geralmente representado com um gadanho, como a Morte: no caso de Saturno, esse gadanho diz respeito às colheitas, aos ciclos da agricultura e da natureza, como alegorias da passagem do tempo; no caso da Morte, o gadanho constitui o instrumento com que ceifa impiedosamente as vidas humanas.

Sebald recorre a essas conotações para escrever um livro sobre a memória e a destruição, evocando personalidades e acontecimentos históricos a partir de uma ‘peregrinação’ pela costa Leste de Inglaterra. Tomando como ponto de partida os lugares por onde vai passando, o autor recorda figuras como George Wyndham Le Strange, um aristocrata que fazia jus ao nome: «saía vestido com roupas de outros tempos que ia buscar ao baú ao sótão à medida que precisava», morreu rodeado de pássaros e deixou toda a sua enorme fortuna à governanta.

Teodor Korzeniowski, que mais tarde assinaria os seus livros como Joseph Conrad – nomeadamente O Coração das Trevas, o seu clássico sobre o Congo –, e o poeta Edward FitzGerald, também ele um homem de hábitos peculiares, são outras das figuras evocadas neste livro.

Sebald conta ainda a história de outros estragos, feitos pelo tempo e não só: palácios esplêndidos transformados em ruínas, florestas inteiras arrasadas por pragas, o litoral em permanente erosão.
Durante a leitura de Os Anéis de Saturno, em que por motivos óbvios depositava grandes expectativas, a insistência do autor na destruição pareceu-me exagerada, mórbida, quase doentia. Mas a sua morte precoce em 2001, num acidente de automóvel precisamente nesta região (Norwich), vem emprestar um caráter estranhamente profético a estas páginas.