Jeanne Moreau. Atriz para uma revolução

Morreu, aos 89 anos, a atriz que fascinou os maiores realizadores da segunda metade do século XX, da nouvelle vague a Hollywood.

“É mais fácil para mim ter fé em Deus, no mundo, nos nossos futuro tendo fé nas mulheres, nas atrizes em particular”, disse certa vez Tennessee Williams numa entrevista. “Tem que haver um Deus – e um Deus que faz as coisas bem – porque fez Jeanne Moreau, e permite que ela se mova para a eternidade nos filmes que fez. Isso é fé.” Mas Tennessee Williams era apenas um nome na longa lista de admiradores de Jeanne Moreau, musa da nouvelle vague eternizada pelos papéis de Catherine em “Jules e Jim” de François Truffaut (na imagem)  e de Florence em “Ascenseur pour l’échafaud”, de  Louis Malle, mas também em Hollywood em filmes como “O Último Magnata”, de Elia Kazan, ou a adaptação ao cinema de Orson Welles de “O Processo” de Franz Kafka – e dela também Welles chegou a dizer ser “a melhor atriz do mundo”. 

E junte-se a estes ainda Antonioni,  Brook, Buñuel, Demy, Diegues, Duras, Godard, Fassbinder, Ophuls, Ozon, Renoir, Vadim, Wenders, Manoel de Oliveira, que lhe entregou o papel de Candidinha em “O Gebo e a Sombra”, ao lado de Michael Lonsdale, Claudia Cardinale, Leonor Silveira e Luís Miguel Cintra. A Jeanne Moreau que morreu agora, aos 89 anos, na sua casa em Paris, informou ontem o seu agente. Foi aliás esse o seu penúltimo filme, em 2012, antes do derradeiro “Le Talent de mes amis” (2015), uma comédia do ator e  encenador francês Alex Lutz. Ao receber a notícia da sua morte, o presidente francês, Emmanuel Macron, prestou o seu tributo à atriz que “encarnava o cinema” e que “sempre se rebelou contra a ordem estabelecida”. Já o antigo ministro da Cultura francês, o socialista Jack Lang, notou a forma como Moreau foi capaz de “mostrar a toda uma geração de mulheres o caminho da emancipação e da libertação”.

Icónica será adjetivo que servirá sempre apertado a Moreau, “estrela inteligente e complexa que  iluminou a nova vaga francesa”, escrevia ontem o crítico de cinema Peter Bradshaw no “Guardian”. Com a sua presença, acrescentava, foi capaz de “abrir espaço para um novo tipo de atriz no cinema francês”: o da mulher “não apenas bonita mas inteligente e complexa”, num desbravar de terreno para atrizes que vieram depois. Catherine Deneuve, Juliette Binoche, Isabelle Huppert. Da mesma maneira a recorda Brigitte Bardot que contracenou com ela em “Viva Maria!” (1965), de Malle. “Jeanne era acima de tudo uma mulher bela, inteligente, sedutora, com uma voz e uma personalidade fora do comum”, escreveu numa nota citada pela imprensa francesa. 

Aquela voz inimitável. Para sempre ficará aquela voz grave que ontem todos recordavam e que em “Jules e Jim” entregou à canção “Tourbillon” como Catherine, personagem à sua medida, notou há anos o crítico e historiador britânico Derek Malcolm. “Moreau consegue [em “Jules e Jim”] uma performance cheia de alegria e charme sem que pareça que tem a cabeça vazia. Consegue fazer o espectador perceber que esta não é a mulher comum que ambos os homens  [Jules e Jim] adoram”, escreveu sobre este que considera “possivelmente o mais completo retrato de uma personagem feminina em toda a nouvelle vague”.

Atriz, cantora, mais tarde realizadora, Jeanne Moreau nasceu em Paris em 1928, filha de uma bailarina de cabaré inglesa e de pai francês, para perceber que seria atriz no dia em que, aos 16 anos, assistiu no teatro a uma apresentação de “Antígona”, de Jean Anouilh. “Li sempre muito, como todos os autodidatas”, contou a atriz numa entrevista que deu ao “Le Monde” há cinco anos. “Mas era proibido ler em casa. O meu pai não deixava, lia às escondidas.” Quando no início da década de 1960 Truffaut a escolheu para Catherine de “Jules e Jim” já Moreau tinha feito mais de duas dezenas de filmes. O primeiro foi “Dernier amour” (1949), de Jean Stelli, apenas dois anos depois da sua estreia em teatro com o Théâtre-Français em Avignon, com uma peça de Ivan Turgenev. Os pequenos papéis no cinema começaram a aparecer na viragem da década, enquanto continuava a fazer teatro, até no final da década de 1950 ter começado a trabalhar com a nova geração de realizadores franceses. 

O primeiro grande sucesso como protagonista seria com “Ascenseur pour l’échafaud” (1958), filme em que se estreou com o realizador Louis Malle, que já nessa altura via Moreau como “a melhor atriz de palco da sua geração”. Era ainda o princípio de uma carreira de 65 anos e mais 130 filmes em que foi atriz, com outros três que realizou. Prémio de melhor atriz em Cannes por “Moderato Cantabile” de Peter Brook (1960), BAFTA de melhor atriz estrangeira com “Viva Maria!” (1965), César de melhor atriz em 1992 com “La Vieille qui marchait dans la mer”, de Laurent Heynemann, dois César Honorários, em 1995 e 2008 (apemas Moreau e Michael Douglas receberam a distinção duas vezes) e uma Palma de Ouro honorária em Cannes em 2003, entre perto de duas dezenas de outros prémios.