Pelé. Houve um dia em que o Rei esteve perto de ser leão…

O dr. Abrantes Mendes deslocou-se ao Brasil para conversar com os dirigentes do Santos

1964: um ano em grande para o Sporting que, em maio, venceria a Taça dos Vencedores de Taças, mais prosaicamente conhecida por Taça das Taças. Hoje, a Taça das Taças não passa de mais um dos troféus europeus atirados para a gaveta do esquecimento, tal como aconteceu com a mais vetusta Taça Latina ou a ainda mais antiga Taça da Europa Central, a primeira congregando os campeões dos países latinos, a segunda, como está bem de ver, juntando os campeões dos países do centro europeu.

Mas se 1964 é um grande ano para o Sporting, não o é para Edson Arantes do Nascimento, bem mais conhecido por Pelé, a cumprir 23 anos de idade. “Edson Arantes do Nascimento. Por extenso, Pelé”, como escrevia Nelson Rodrigues. 

Em 1964, já Pelé fora campeão do mundo por duas vezes: em 1958, na Suécia, e em 1962, no Chile, embora no Mundial chileno cedo se visse afastado da competição por via de uma rotura muscular sofrida no jogo inaugural frente à Checoslováquia, com a qual, curiosamente, o Brasil viria a disputar a final do torneio. Agora, no Brasil, vivia dias de conflito com a imprensa, que o acusava de se ter aburguesado e não compreendia as prolongadas lesões de que sofria. Ah! Afinal, Pelé era Pelé, mas não era Deus. Ou, pelo menos, não era absolutamente Deus; talvez apenas um deus menor. 

A sua relação com o seu clube de sempre, o Santos, também já vira melhores dias, e alguma saturação parecia poder ser aproveitada para que os grandes clubes da Europa, sobretudo de Espanha e Itália, se lançassem na corrida pelo extraordinário jogador. O Real Madrid mostrou–se desde logo disponível para o receber em Chamartín com as honras reais que Pelé merecia, na tentativa de recuperar a hegemonia europeia que fora sua no tempo em que vencera cinco Taças dos Campeões de enfiada. A Juventus e o Inter, à altura os mais ricos clubes de Itália, também acenavam com ofertas milionárias. E, discretamente, o Sporting fez a sua tentativa. No auge de mais uma polémica envolvendo o n.o 10 do Santos e da seleção canarinha, desta vez com acusações suas sobre a forma como os árbitros iam permitindo o excesso de dureza dos adversários sobre si, o presidente leonino, dr. Abrantes Mendes, desloca-se ao Brasil para falar com o jogador. Leva na bagagem a esperança de uma transferência sensacional que pode pôr o Sporting no rol dos grandes clubes do mundo e retirá-lo da incómoda sombra vermelha do Benfica que, com as suas vitórias e finais perdidas na Taça dos Campeões, ganhava a aura de grande representante internacional do futebol português. 
Entre o público lusitano há o sonho de juntar em Lisboa os que são, reconhecidamente, os dois melhores jogadores do mundo. Pelé e Eusébio. Ah! O que seria o campeonato nacional com dois monstros de tal grandeza…

Mas as esperanças de Abrantes Mendes e do Sporting desfazem-se como um torrão de areia por entre os dedos aos primeiros contactos com os dirigentes do Santos. Para eles, Pelé é inegociável e ponto final! Não querem sequer ouvir falar de dinheiro, estão perfeitamente fechados a qualquer tipo de proposta, quanto mais negociação. O presidente sportinguista regressa de mãos a abanar, mas isso não impede o Sporting de arrancar para aquela que foi, talvez, a época mais brilhante da sua história. Com uma equipa onde pontificam o guarda-redes Carvalho, os defesas Alexandre Baptista, Pedro Gomes, José Carlos, Hilário e Fernando Mendes, os médios Peridis e Géo e os avançados Osvaldo Silva, Mascarenhas, Figueiredo e Morais, vence a Taça dos Vencedores das Taças na finalíssima face ao MTK Budapeste.

O campeonato está perdido para o Benfica mas, nesse ano, pouco importa. Pela primeira e única vez na sua história, o leão vence uma prova europeia e as razões para a alegria dos seus adeptos é mais do que justificada.
Entretanto, no Brasil, Pelé retoma a pouco e pouco a sua grande forma. Conduz o Santos à vitória no Campeonato Paulista e sagra-se melhor marcador do torneio. Em maio leva a seleção do Brasil a uma das mais significativas goleadas de sempre, frente à Inglaterra, no Maracanã, por 5-1. Nesse jogo marca um golo, como marcará outro, no mês seguinte, contra Portugal, em nova goleada sem apelo nem agravo: 4-1. Os dirigentes do Santos estão, também eles, felizes pelo bom senso de não terem considerado sequer a hipótese de o negociarem. Pelé manter-se-ia no clube por mais dez anos, antes de rumar à sua reforma dourada no Cosmos de Nova Iorque, em 1974. Pelo Santos venceria ainda mais cinco campeonatos paulistas, duas Taças do Brasil e dois Torneios Rio-São Paulo. Voltaria a ser campeão do mundo pelo Brasil em 1970. Nunca deixou de ser o melhor jogador do mundo.