Alexander Search. Das cinzas da fama nasce uma nova promessa

Júlio Resende e Salvador Sobral foram buscar o amigo imaginário dé Fernando Pessoa e, da sua rebeldia adolescente, fizeram uma liturgia assombrosa dedicada aos que renegaram os deuses frívolos e os ídolos banais deste tempo

Murado hoje pelos tomos infindáveis que lhe foram dedicados,  pelo túmulo académico e as flores numa abundância que até às abelhas provocam alergias, já mal se vê o adolescente que foi Fernando Pessoa, trancado com a alvorada do seu génio, em Durban, na África do Sul. Fora da língua que viria a tomar como pátria, ensarilhado com as suas ânsias e brutais expectativas, assoberbado por “uma sede de minh’alma ultrapassar, da consciência romper”. Quantos não dividiram o mais que puderam a solidão para conquistá-la, não se partiram em amigos imaginários para povoar essa terra às vezes tão inóspita. É de lá, desse soltar de amarras do génio, que nos chegam as letras da banda Alexander Search. O projecto de Júlio Resende e Salvador Sobral fez algo que, com um século em cima, ninguém tivera a audácia de fazer. Ir bem lá atrás, fazer um movimento radical e esquecer o fantasma apavorante de Pessoa, buscar a sua colaboração para a banda de rock que também ele nunca teve.

Numa entrevista a este jornal, Resende contou que foi depois de um excelente momento na sua carreira de pianista a solo, depois do sucesso do álbum “Amália por Júlio Resende” o ter levado a fazer o Norte e a Sul que Portugal permite, e depois ir além, pela Europa até  ao Japão, México… Ficou-lhe o desejo de ter mais com quem ir marcando mais xis no mapa, algo colectivo. Tinha dado com um pequeno livro dos poemas em inglês – “No Matter What We Dream” – em nome do tal Search, tido como um pré-heterónimo de Pessoa, em certo sentido também um gémeo, uma vez que partilham a data de nascimento, no mesmo local: 13 de Junho de 1888, em Lisboa. E para Resende esse foi o rastilho, aquela inquietação toda pôs-se a arrancar-lhe notas dos nervos, e veio de lá o impulso para também ele ter a sua banda de rock, e valer-se do ímpeto do outro em inglês”.

Isto foi há cerca de dois anos, e ainda antes de saber com quem iria pôr-se em viagem, fez malas para a partida de um exército. Numa espécie de frenesim, andou a compor canções umas atrás das outras, a levantar melodias a partir dos sonhos, das visões e das dores do outro. A banda tinha já no seu gérmen os elementos de uma “devastação inteligente”, e Resende tem sublinhado o quanto os poemas de Pessoa nunca foram sacralizados, mas regados de combustível, para que deflagrassem enquanto letras que ficassem no ouvido, como um zumbido insistente a ganhar cada vez mais sentido. É assim que, tanto tempo depois, com tanta profanação ordinária do túmulo e da arca, uns poemas adolescentes, rebeldes, aqui e ali até pueris, montam o cavalo da improvisação, com o piano de Resende a estender a largura do campo.

Inicialmente, ainda convidou David Fonseca para dar voz ao projecto. Pareceu-lhe a escolha mais óbvia, pelo percurso já seguro a cantar em inglês. Até houve uma luz verde, mas depois as agendas não combinaram, e foi preciso seguir com a busca, uma que cedo daria frutos, desses capazes de derrubarem uma árvore. Estava o pianista de Faro numa jam session no Hot Club, quando sobe ao palco, um miúdo com pinta de fauno, algo a lembrar aquela raiz grega do nome Alexander. E a procura que o outro nome exige teve ali o seu primeiro triunfo. Numa entrevista anterior, Salvador Sobral contou como perguntou a Resende se ele sabia tocar o “Darn That Dream”, ao que este lhe respondeu: “Eu sei todas”. “Achei aquilo um bocado estranho”, recordou Salvador, “mas depois mostrou o telemóvel, que é onde tem as partituras. Ainda hoje usa essa piada, é como os velhotes, conta sempre a mesma”.

Numa espécie de cruzamento onírico, aquele piano com a suavidade matreira de um engenhoso cerco, rápido entre o mel e a picada, ganhou a voz que faz da insegurança, das inflexões subtilíssimas uma forma de cantar reflectindo, uma ousadia, uma elegância própria de quem guarda uma juventude invencível. E antes mesmo disso, já havia posições em campo, uma identidade sónica com a guitarra de Daniel Neto, a bateria de Joel Silva e a electrónica de André Nascimento. 

Voltando aos sonhos e ao prefácio do livrinho de poemas em inglês, ali Patricio Ferrari e Jerónimo Pizarro chamam a atenção para o modo como nos poemas de adolescência do homem que viria a desdobrar-se em multidão estava já uma das suas máximas sobre a arte: “Quanto mais eu sonhe, menos real, menos fechado sobre mim me torno – quanto mais eu sonhe, menos sou simplesmente eu”. Uns anos antes, também já havia anunciado: “O maior de todos os poetas modernistas será aquele que tiver maior capacidade de sonhar”. 

O álbum homónimo dos Alexander Search combina idealmente o alcance poético das letras – os poemas sacrificados quando é necessário, postos a serviço da música – com uma espinha dorsal melódica sobre a qual se vão construindo fugas experimentais, arranjos inusitados, com canções que tanto compensam quem não tem defesas para grandes fulgores jazzísticos, porque aqui tudo, mesmo os arroubos, ficam junto ao osso, o que vai florindo cobre a pele, a energia nunca extravasa um gesto da carne. É uma estreia vigorosa, com uma fluidez nos piscares de olhos, entre o indie pop, o rock que puxa maior folga na trela a partir do jazz, e a electrónica a abrir portas e janelas colando ambientes misturados por sonhos.

Entretanto, os músicos não se ficaram pelo vigamento sonoro, porque as canções são apenas linhas de partida, e o palco será sempre a meta. Tanto Resende como Sobral garantem que será nos espectáculos ao vivo que a ficção irá fazer mais furos na realidade. Desde logo, porque cada um dos elementos se vinculou a um heterónimo. Alexander Search é também uma carta branca estendida pela imaginação, e Resende vai agora apresentar-nos a Augustus Search, um tipo que martela as teclas do piano tendo aprendido com os reflexos nas escamas do peixe, sendo um pescador de Provincetown – cidade piscatória norte-americana com uma importante comunidade portuguesa e onde, curiosamente, o pianista de facto esteve para nascer.

O tempo como ficção é a primeira coisa a pedir para ser violado e, por isso, Agustus ainda conheceu Alexander Search em Lisboa, antes de este ter morrido. Os poemas ingleses ficaram como herança, trocados em letras. Salvador é Benjamin Cymbra, e nasceu num corpo de menina na África do Sul. A troca de sexo, se é bastante convincente, não feriu um certo apelo andrógino e a nova personalidade diz muito a um tempo que já não tem paciência para as “comunidades práticas de pregar com pregos as partes mais vulneráveis da matéria”. Há ainda as outras três personagens: Sgt. William Byng (André Nascimento), Mr. Tagus (Joel Silva) e Marvell K. (Daniel Neto).

Quanto ao mediatismo de Salvador Sobral, à vitória no Festival Eurovisão da Canção, ainda falta um bom tempo para que esse acontecimento se reduza a uma curiosidade, certamente relevante, um impulso decisivo, que atirou logo a banda para a terceira posição nos tops de vendas. Mas se “Amar Pelos Dois” abriu o mapa, encantou muita gente, agora vem a parte mais interessante, em que é “tão importante destruir como construir”, refere Salvador, o momento em que a grandeza do que foi feito exige a coragem para não se contentar com repeti-lo. “A repetição é um perigo. A rotina na música é uma coisa de que estamos constantemente a fugir. Então nos nossos concertos a última coisa que queremos é repetir-nos”. Está prometido.