Repórter X: a imaginação prodigiosa. Reinaldo Ferreira nasceu há 120 anos

Foi um ás do jornalismo de investigação e da reportagem sensacional e polémica. O mundo do crime, da fraude e do insólito atraía-o como um íman. As suas cartadas, batidas com audácia e uma fé inabalável, fizeram dele uma figura ainda hoje embrulhada num misto de realidade e lenda 

Ficou conhecido como Repórter X e chegou a ser homenageado por vultos como Fernando Pessoa e Almada Negreiros. O seu nome de guerra, criado em 1923, resultou da combinação de um pseudónimo anódino para salvar a pele, após a publicação de um artigo sobre José António Primo de Rivera, líder da extrema-direita espanhola, com um rabisco em cruz, espécie de garatuja total que a distração de um tipógrafo transformou numa marca que deixou ecos audíveis na história do jornalismo português. Reinaldo Ferreira nasceu para a vida dos jornais aos 12 anos. Aos 13 era um rapazola já com uma considerável carteira de títulos e um número impressionante de contactos nos altos meios do cinema europeu. O romance naturalista que, por esta altura, trazia em mãos valeu-lhe a alcunha de “Zola da Almirante Reis”. A tudo aquilo que foi – repórter, folhetinista, novelista, dramaturgo, realizador de cinema – deve acrescentar-se o adjetivo inventivo, em alto grau. 

Nasceu em Lisboa fez ontem 120 anos, dir-se-ia que com o dom da ubiquidade. Esta estranha qualidade permitiu-lhe viver em Paris mandando vivas crónicas da Rússia, para onde foi enviado em 1925 pelo “ABC” a fim de acompanhar a disputa pelo poder entre Estaline e Trotsky, e onde nunca terá posto os pés, o que não o impediu de se cruzar com portugueses nas mais inacreditáveis funções, desde o porteiro do Kremlin ao homem que embalsamou Lenine. 
O mesmo dom, aliás, que já em finais de 1918, no dramático momento em que Sidónio Pais tombava na Estação do Rossio, muito provavelmente sem hipóteses de articular um fonema, vítima que fora de disparos fatais, lhe possibilitou recolher as suas últimas palavras para “O Século”, citadas vezes sem conta: “Morro bem, salvem a Pátria!” Ainda o mesmo dom que lhe permitia estar no aconchego do seu gabinete a seguir, no terreno, crimes e casos, reais ou imaginados, que surgiam em reportagens sensacionais, dignas de um “Détective” ou de um “Kriminal-Magazin”, e cujos títulos feriam a atenção do público. “A enterrada viva” (“Manhã”, 1918) é apenas um exemplo. Era um modo único – e ainda hoje insuperável – de estar no jornalismo. 

Num tempo em que a especulação excedia a realidade e o rigor da notícia era o menos, Reinaldo Ferreira manuseava como ninguém a pasta dos assuntos policiais. Data de 17 de junho de 1917 a sua primeira ficção publicada como notícia. Sob o pseudónimo do alfacinha Gil Goes, um suposto detetive amador, escreve cartas ao diretor d’“O Século” para denunciar os “Mistérios da Rua Saraiva de Carvalho”. Eram relatos horripilantes de um crime hediondo que metia bandidos dissimulados, um presumível cadáver e um vilão sinistro, “o homem dos olhos tortos”. Os leitores da trama, recebida com um misto de temor e de avidez, andavam num tal estado de ansiedade que o jornal, entretanto em reboliço, achou melhor pôr um travão nestas narranças, revelando que tudo não passava de um produto da imaginação prodigiosa de Reinaldo Ferreira. Resultado: o jornal subiu as vendas, os folhetins prosseguiram até ao desenlace e o repórter deu continuidade à sua pulsão imaginosa. 

O assassinato da atriz Maria Alves, cujo homicida ajudou a deter com as reportagens que publicou, veio distingui-lo como grande repórter criminal. Mas o nosso homem também não deixava de lado os dossiês financeiros, estivessem eles dentro ou fora de portas. Famosas ficaram a cobertura jornalística que assinou do caso Alves dos Reis e a alegada campanha alemã para desacreditar a moeda inglesa. O caso, que envolveu o banqueiro Francisco Borges, do Banco Borges & Irmão, passaria pela produção de libras de louça e, portanto, quebráveis. 

Confrontado com as suas “reinaldices” – a expressão que então começou a correr na boca dos que lhe iam apontando as patranhas –, replicava com um verbo novo: “reporterxizar”. Existem outras, mesmo porque odiava instalar-se na rotina dos casos do pequeno burgo: a entrevista à famosa espia Mata Hari e uma outra a Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, nunca contactados por esta figura de imaginação delirante. A sua criatividade imensa levou-o até a descobrir uma raça de homens-toupeira, sobreviventes do terramoto de 1755, que povoavam galerias do subsolo alfacinha. Coisas de espantar. 

Três anos depois de ter sido admitido na redação d’“A Capital” – tinha então 17 anos e uma formação feita na leitura de folhetins policiais e de espionagem – foi considerado o primeiro repórter português, alcançando prestígio em toda a Europa, onde chega a viver de 1919 a 1924 e a exercer o seu “jornalismo de inspiração”, acompanhando o mundo em capitais como Paris, Madrid, Barcelona ou Bruxelas. “A minha existência é uma lufa-lufa esfalfante” – bem pôde dizer. Trabalhava em média três onças diárias de tabaco francês; acabado o tabaco, acabava a escrita, que decorria em ritmo acelerado. Numa entrevista que deu a si próprio, disse que se contentava em ser leitor ao mesmo tempo que escritor: “Escrevo com a curiosidade de quem está lendo uma obra policial. Muitas vezes abanco à minha mesa sem ter um plano traçado. Dez minutos de reflexão e a reminiscência de um passado real da minha vida vagabunda bastam para semear todo o assunto. Depois lanço a pena numa correria sobre o papel e é ela que escreve. E eu leio, emocionado e impaciente por decifrar o mistério, como se fosse um leitor de verdade.” 

O autor da reportagem “E se fizessem em Portugal o Hollywood da Europa?” espalhou o melhor da sua prosa desataviada por prestigiosas revistas como a “Ilustração” ou a “ABC.” Nesta última assinou uma série de crónicas sob a epígrafe genérica “D’aqui a vinte anos”, que visionavam o futuro de personalidades contemporâneas preponderantes em vários domínios da vida portuguesa: “o Dr. Afonso Costa, cardeal”, “Aquilino Ribeiro, frade capuchinho”, “Bernardino Machado, boy-scott”. Assumindo-se definitivamente como futurólogo, abriu um consultório de adivinhações que tiveram prolongamento nas várias reportagens proféticas que assinou, “Como será Lisboa dentro de 20 anos?” ou “O que será o Porto no ano 2000?”.

Aquele que viria a revelar-se um mau profeta da sua cidade-berço, onde estrearam algumas das suas peças, d’ “A Dama do Sud” a “O Homem que Mudou de Cor”, publicou largas dezenas de novelas policiais, muitas das quais servidas sob a forma de folhetim. Os títulos das suas criações, com cenários fantásticos, povoadas de seres extraordinários e heróis como o da série que antecipou o “Super–Homem”, “O Mosqueteiro do Ar” (1933), dizem bem do seu génio imaginativo: “Os Cinco Cadáveres do dr. Máximo”, “O Homem dos Três Braços”, “A Rua Sinistra”, “O Homem que Perdeu o Cérebro”, “O Jardim das Flores Envenenadas”. 

Movimentando-se confortavelmente entre o facto e a ficção, a realidade e o fantástico, entre este mundo e o outro (que a morfina em que se viciou ajudaria a suster), trabalhou nos mais conhecidos jornais do seu tempo, d’“O Século” ao “Primeiro de Janeiro”, que lhe publicou o famoso folhetim “O Táxi n.o 9.297” (baseado no célebre assassinato da corista Maria Alves), levado a palco, convertido em filme que o próprio Reinaldo Ferreira dirigirá no Porto, onde passa a viver nos finais dos anos 20, e publicado em livro em 1974, por iniciativa de Natália Correia. 

Explorando a popularidade que o seu nome rapidamente assume, Reinaldo Ferreira funda em Lisboa o semanário “Repórter X” (1930-1933), impresso em papel cor-de-rosa e com a larga divulgação que as tiragens de dezenas de milhares atestam. Seguiu-se, já no final da sua breve e atribulada existência, o efémero e muito concisamente intitulado “X” – de que logo se enamorara e que lhe serviu também para batizar a sua produtora de cinema: a Repórter X Film. 
Da publicação, em 1933, do primeiro volume das “Memórias de um Ex-Morfinómano” (título que depressa precisaria de retificação) até à data da sua morte, a 4 de outubro de 1935, cerca de um mês antes de Fernando Pessoa, foi o descalabro. O álcool, a cocaína e a morfina foram a conjugação fatal.