Os riscos da coligação que já existe

Andamos, há quase dois anos, a escrever que a solução de governo conhecida como ‘geringonça’ recentrou a vida política no parlamento. É falso. A geringonça não parlamentarizou; a geringonça marcelizou.  Na Assembleia da República, o governo não tem oposição (PSD e CDS esperam por 2019 para resolverem as suas lideranças) e os parceiros à esquerda…

Andamos, há quase dois anos, a escrever que a solução de governo conhecida como ‘geringonça’ recentrou a vida política no parlamento. É falso. A geringonça não parlamentarizou; a geringonça marcelizou. 

Na Assembleia da República, o governo não tem oposição (PSD e CDS esperam por 2019 para resolverem as suas lideranças) e os parceiros à esquerda pouco importam, pois estão reféns da sua própria solução. Em entrevista a este jornal, Daniel Oliveira bem disse que o problema do Bloco de Esquerda e do PCP é o seu eleitorado gostar mais da geringonça do que eles, que a fizeram. Foi assim que todas as alegadas «crises internas» entre Bloco, PCP e Partido Socialista – das cativações à Altice, da TSU à Venezuela – não passaram disso mesmo: alegadas. A direita esteve sempre lá para ser culpabilizada pelo que fez enquanto governo ou disposta a fazer pior enquanto oposição. Mais que «o cimento» da geringonça, ela é o escape da sua encenação. 

Costa limita-se a sorrir bandeiras para ninguém reparar que o governo mais «à esquerda desde 82» cumpre escrupulosamente as metas que a União Europeia lhe impôs. Veio a «habitação» depois de Pedrógão; veio a «educação» depois de celebrar o défice, isto é, a austeridade. 

Sem esquerda, sem direita e sobrando o Governo, o contrapeso é feito por um único órgão: a Presidência – o que é manifestamente perigoso na medida em que o órgão predileto para o escrutínio democrático seria o parlamento. 

É por isto que Marcelo veio dizer em entrevista que prefere ter Governo e oposição distintos e não um Bloco Central: porque o Presidente governa com este Governo e com uma oposição que não lhe pode tocar. A quadratura é essa. O que Marcelo fez, apadrinhando um Executivo socialista, foi saber duas coisas: (1) que a esquerda tem uma popularidade que a direita não tem, e que ele quer, e (2) que a direita e a sua falta de popularidade não atacariam um Presidente tão popular quanto Marcelo. O certo é que essa coligação funcionou. São Bento e Palácio de Belém são donos e senhores do coração do povo; a oposição não atira uma pedra à presidência. Não lhe podia ter corrido melhor.

E Marcelo acha que pode. Até já foi líder da oposição, até já viabilizou governos do PS. A mesa de negociações não lhe é estranha. Convém é não esquecer que António Costa nada tem que ver com António Guterres e, sobretudo, que um Presidente não tem um grupo parlamentar consigo, ao contrário do que ele teve durante o ‘guterrismo’.

O maior e mais irónico risco de Marcelo é, assim, a sua solidão. Neste seu Bloco Central  com Costa corre o sério risco de isolamento político. O primeiro-ministro tem máquina, governo, partido, pressões de Bruxelas e pressões da ‘geringonça’, consoante a desculpa que quiser dar. Marcelo, por sua vez, não tem nada disso; tem apenas a Constituição da República, o que é pouco. Para quem já esqueceu, não chegou para Aníbal Cavaco Silva travar José Sócrates. E bem tentou. 

Estes riscos, com que o atual Presidente convive diariamente, são também os da República. Quando eles forem confirmados, esta coluna cá estará, para dizer que foi ele que os escolheu.