O interior litoral

Durante o verão, o SOL traz-lhe memórias das férias de várias personalidades. Hoje é José Ribeiro e Castro, ex-líder do CDS.

No tempo das ‘férias grandes’ – as férias escolares iam de 10 de Junho a 5 de Outubro -, era costume distinguir férias de praia e férias de campo. Para quem vivia em Lisboa, a praia era na linha de Cascais. As minhas foram sobretudo em Carcavelos. Férias de campo eram períodos passados na ‘província’, em locais associados às origens da família. As nossas eram em Odemira, terra de minha mãe e da avó Judite. Os avós viviam em Lisboa, mas, em maio, seguiam para Odemira, onde ficavam até outubro. Todos os anos, por setembro, lá íamos os quatro (meus pais, meu irmão e eu) passar uma semana à Casa do Castelo. Eram dias cheios e diferentes. 

Foi nessas idas ao meu Alentejo que fui construindo duas teorias: uma, a de que o centro do mundo é onde nós estamos; outra, a de que litoral/interior é, às vezes, questão de perspectiva.

Irrita-me este complexo atávico das ‘periferias’, sobretudo num país que mostrou ao mundo que a Terra é redonda. Nada é periférico: se mais longe de uns, mais perto de outros. O desafio que se põe, realmente, é imaginarmos e construir centralidade a partir do nosso lugar. 

Aos meus olhos de criança e, depois, jovem ou já adulto, Odemira foi várias vezes o centro do mundo, o melhor lugar de toda a Terra. O gozo que me deu, numas férias nos anos 1990, compor no computador, no escritório que tinha sido de meu avô, um jornal de duas páginas – “O Clarim de Odemira” – e mandá-lo como fax, pelo “modem” velhinho da Telepac, para Cantão, onde trabalhava um cunhado meu. Inaugurei as ligações Odemira/China, muitos anos antes de abrir, junto ao Mira, a loja do chinês: o grande Xiao Xin. 

A 20 km da costa, Odemira era, então, interior. O meu pai contava que, nas minhas primeiras viagens a Odemira, a estrada ainda era em terra batida a seguir ao Cercal. Não me lembro disso, mas já de seguir muito atento, olhando por detrás de meu pai ao volante, esses últimos 23 km de curvas da N120, que, ainda hoje, faço de cor. Não havia ligação directa por telefone: quando ligávamos de Lisboa, pedíamos à telefonista “Odemirrrrra nove trrrrês (93)”, carregando muito nos erres. E interior são, hoje, ainda, São Martinho das Amoreiras, Sabóia, Santa Clara, Colos, Vale de Santiago e Relíquias, terras do concelho que só conheci muito mais tarde. Mas, olhando o mapa, o paradoxo interior/litoral surge evidente.

O sentimento de interioridade era reforçado pelo tipo de férias. Não íamos à praia. A pressão sobre o Algarve só começou nos anos 1960; bem mais tarde no litoral alentejano. Não havia festival do Sudoeste. Em criança, poucos iam a ares, na costa: Zambujeira e Almograve. A Milfontes pouco. Ainda não havia a ponte sobre o Mira e, assim, chegados ao Cercal, dava mais jeito seguir para Sines. Aqui, fizera a minha mãe praia em jovem e também visitei família.

Em Odemira, o tempo era passado em passeios pelo campo ou brincadeiras na Casa do Castelo, com as inevitáveis descobertas. Foi aqui, no terraço, que os nossos primos (viviam em Garvão, onde o meu tio era médico) nos mostraram que as galinhas corriam depois de lhes cortarem a cabeça. Combinaram com a empregada que se ocupariam da matéria-prima para o jantar, foram à capoeira e… zás!… os meninos da cidade aprenderam mais uma. 

Clássico era o burro da Cascalhosa (uma quinta dos avós), que todos experimentámos anos a fio. Era melhor que carrossel de feira. Aí tivemos jardim zoológico privativo: vacas e bois, porcos, borregos, cabras, coelhos e galináceos variados. E árvores de fruto inesperadas: uma amoreira. Já comeram amoras apanhadas da amoreira e refrescadas na água do poço? 

Havia também o passeio anual a Lagos, guiados pelo avô Jaime no Panhard do seu orgulho – para as idas  à Cascalhosa, usava um não menos clássico “dois cavalos”, que fazia as delícias gerais.

A nossa estadia coincidia normalmente com as festas de Odemira – o dia de Nossa Senhora da Piedade, 8 de setembro. Do nosso terraço, seguíamos lá em baixo a procissão a passar na praça central, muito diferente de hoje: na altura, tinha um terreiro, onde estacionavam as camionetas da carreira; desde o princípio dos anos 1970, é um jardim público, bem cuidado. As festas traziam grande animação à vila: a feira de gado, feirantes de tudo, divertimentos, farturas, comes-e-bebes. E, claro, havia as refeições de família, com os tios e primos, que vinham de Garvão, no vizinho concelho de Ourique.

Estas férias interromperam-se a certa altura, a meio dos anos 1960; mas ficou uma marca, que retomei por minha conta, a partir dos anos 1980 até hoje. É onde escrevo, agora. 

Herdei a Casa do Castelo, que fomos adaptando ao nosso gosto e novas necessidades. Os nossos filhos também usufruíram do burro da Cascalhosa – já o segundo ou terceiro depois do “meu”. E também foram a Lagos, embora menos do que meu avô fazia. Em contrapartida, os passeios anuais foram ampliados a Sevilha e várias paragens algarvias. Aí, passámos Verões seguidos, numa Odemira já litoral, muitas vezes cantando ruidosamente o “Vamos a la playa” como hino oficial, à descoberta e para usufruto de todas as praias da bela costa, do Carvalhal ao Malhão e aos Aivados, passando pelas Furnas e foz do Mira, ou, mais a sul, Amoreira, ou, a norte, Porto Covo e São Torpes. Passou a haver pontos novos, como a Barragem de Santa Clara, para banhos e animados piqueniques, ou o convívio muito estreito com a família Amaro da Costa, em São Martinho das Amoreiras. Deslumbramo-nos continuamente com um litoral de fantástico pôr-do-sol e cheio de recantos selvagens, que ainda vou descobrindo para me encantar: o último foi a Lapa das Pombas, que achei há quatro anos.

Não, não é só o Cabo Sardão. É muito mais. De facto, o centro do mundo. Quem disse que não?