Leonor Figueiredo. “Era uma luta impossível, como de uma formiga com um elefante”

A liquidação da extrema-esquerda em Angola começou por ser uma guerra de gerações

Escrever sobre Angola foi a sua tábua de salvação. Tinha saído do “Diário de Notícias” e precisava de continuar a investigar e a pensar. Só com o seu primeiro livro, sobre a descolonização, fez o luto da morte do pai, um homem que desapareceu sem deixar rasto, em plena batalha de Luanda. Edita, agora, “O Fim da Extrema-Esquerda Angolana”, uma obra sobre uma geração de ativistas, na maioria do movimento estudantil, que acabou nas prisões.

Qual era a importância dos Comités Amílcar Cabral na luta anticolonial e no processo de descolonização em Angola?

Eles eram um grupo de universitários, que depois evoluiu. Tinham a sua teorização própria da sociedade, embora confiando no MPLA, como movimento de esquerda para cumprir um determinado papel. Embora tenho havido um choque de gerações com o MPLA, inicialmente mais do que uma diferença ideológica ou política. A importância deles foi enorme no movimento estudantil. É um fenómeno que é pouco conhecido em Portugal.

O historiador que assina o prefácio do seu livro tem uma tese que eles são fundamentais nos primeiros tempos depois do 25 de Abril de 74, para que o MPLA tenham influência em muitas zonas urbanas de Angola. 

Na cidade estavam os jovens ufanos com o 25 de Abril e houve muita ação política em prol do MPLA. Perante a UNITA, FNLA e MPLA, a maioria dos estudantes apoiava aquilo que julgava ser a esquerda que defendia a independência de Angola. Mas logo no início, começaram os primeiros choques. Eles faziam muitos comunicados acintosos em relação à direção do MPLA e criticavam muito a corrupção, que era uma coisa de que na altura não se falava e que agora é um dos males de Angola. Fizeram alguma mossa, até porque eram um grupo de jovens ativos e aventureiros.

Paradoxalmente, a sua força afirma-se quando conseguem sair da universidade depois dos primeiros massacres nos musseques. 

Entre o 25 de Abril e a chegada da direção dos vários movimentos passam muitos meses. E com aquela ebulição da revolução muita coisa se passou na cidade de Luanda. Quando os dirigentes chegaram, encontraram aqueles jovens extremamente ativos e politizados no terreno. Eles não estavam à espera de encontrar a cidade tão mudada e desenvolvida, nem estavam à espera daqueles jovens tão politizados e com tanta bagagem ideológica. A maior parte dos dirigentes do MPLA há muito que tinham saído do país ou estavam na mata na guerrilha. As mudanças que se tinham dado nas últimas décadas apanharam-nos de surpresa. Angola, sobretudo Luanda, tinha pouco a ver com o país que tinham deixado. 

Coloca na voz de um dos principais dirigentes do MPLA a interrogação do espanto quando chega do exílio: “como é que vamos governar isto?”

Apesar de eles terem informações de Angola, as comunicações eram complicadas. E na altura e eles não tinham consciência quanto Angola se tinha desenvolvido. Havia uma grande mudança, nomeadamente devido à juventude que cresceu nos anos 60 e que teve acesso à universidade no território. É uma dinâmica nova que muda profundamente a paisagem política. Mesmo antes do 25 de Abril, tinha havido muitas prisões de universitários e mesmo gente dos liceus.

Coloca a génese do movimento na deslocação para Angola de um militante da URML (Unidade Revolucionária Marxista-Leninista), uma corrente pró-albanesa, que vem das FAP, mas pelas suas características geracionais e tipo de atividade, os Comité Amílcar Cabral parecem mais semelhantes a correntes mao-spontex como a Esquerda Democrática Estudantil que vem dar origem ao MRPP. 

Eles consideravam-se marxistas-leninistas. No conflito sino-soviético estavam contra a posição da União Soviética, mas não estavam propriamente ao lado da China. Há um deles que vai em visita à China e volta de lá com muitas dúvidas, dizendo que a teoria não está a resultar na prática. Ouviam a Rádio Tirana em brasileiro. Há também uma influência que advém dos movimentos de juventude dos anos 60 e do próprio Maio de 68. 

Um aspeto curioso é que um dos integrantes dessa extrema-esquerda angolana é defender que eram anti-estalinistas, quando os movimentos ditos marxistas-leninistas, uma das razões porque romperam com os soviéticos foi pela denuncia do estalinismo por parte de Krutchov no XX congresso do PCUS. 

Há ali uma ligeira degeneração muito específica do local. A situação colonial e o processo de descolonização fazem com que as referências ideológicas sejam muito particulares e diferentes do que seriam na Europa. 

Pode haver uma pequena alteração no relato das posições no passado, devido às posições do presente?

Sim, foi uma investigação com muitas dificuldades até pelo facto de grande parte da documentação terá sido perdida, destruída ou está na posse da polícia política angolana, a DISA. Os Comités Amílcar Cabral (CAC) e a Organização Comunista de Angola (OCA), que deles sai, são considerados maoistas. Mas tudo em África é diferente e essas referências ideológicas são lidas de uma forma diferente. Até porque durante a guerra civil angolana os chineses, herdeiros do maoismo, apoiavam com armas e meios a FNLA, contra o MPLA.

Inicialmente os CAC integram algumas estruturas do MPLA têm até lugares sem voto no comité central desse partido. 

Porque eles são muito ativos e quando o MPLA chega quer aproveitá-los. Até porque trabalhavam em nome do MPLA sem este o ter pedido. São responsáveis por muito trabalho e grandes movimentações de massas em Luanda.

Eles chegam a fazer mudar a orientação do MPLA, que defende inicialmente uma “democracia nacional” e acaba por defender o “poder popular”, que os CAC propõem.

Apesar de o poder popular não ter o mesmo significado para uns e para outros, essa mudança de terminologia é muito importante e demonstra a popularidade dos CAC nessa altura. Quando há os massacres nos musseques, eles que dominam o movimento estudantil, são os primeiros a chegar a esses bairros para apoiar a população e isso é muito importante. Chegam e ajudam a fazer a autodefesa e a propaganda. Ações que lhes deram uma grande popularidade nos musseques. O que lhes permitiu sair da universidade e ganhar importância política.

Sendo a grande maioria dos ativistas estudantis brancos, como é que eles conseguiram entrar nos musseques, onde havia uma grande desconfiança em relação aos brancos?

Quando foi a questão dos massacres aí juntou-se muita gente que estava nos liceus e na universidade que também vivia nos musseques. Os musseques também tinham milhares de habitantes brancos.

Na sequência dos massacres muitos habitantes brancos dos musseques são expulsos. 

Nem todos os brancos expulsos eram exploradores e monopolizavam a água. Mas depois do massacre dos musseques houve um revanche e a maioria dos habitantes consideraram que por segurança os musseques tinham que ser negros, por uma questão de segurança. Esse racismo pode ver-se na história do próprio MPLA. Foram poucos os não negros que tiveram posições de destaque: Lúcio Lara, que era o número dois, Pepetela e António Jacinto, que foi ministro da Educação.

Os CAC têm uma estratégia entrista (infiltrar e pretender tomar posições por dentro do partido) no MPLA?

Exatamente, eles são muito ativos e o MPLA começa a convidá-los. Os CAC, mesmo criticando o MPLA, começam a entrar, e fazem o que eles chamam de entrismo: “vamos lá ver se conseguimos mudar as coisas por dentro”. 

Pode-se também dizer que há alguma justificação na reação que o MPLA teve contra eles ao perceber que eles não iam dar a lista das pessoas dos CAC que entravam? Há, no seu livro, um responsável da polícia política que diz: “vocês não entregam as fichas como disseram, mas não pensem que me fazem de parvo, porque eu sei que estão a criar um partido dentro do partido”, ele não estava totalmente fora da realidade?

Não estava. Embora o cenário fosse utópico: quem é que tinha as armas e o exército? Eles tinham alguma gente nas FAPLA [Forças Armadas Populares para a Libertação de Angola, braço armado do MPLA], mas outras fações do MPLA, como a pró-soviética do Nito Alves, tinham muito mais gente armada. 

É verdade que algumas pessoas oriundas da extrema-esquerda maoista participou na repressão do 27 de Maio aos partidários do Nito Alves?

Não creio. Isso foi posterior. O Nito Alves é que teve participação na repressão aos maoistas. Ele é o primeiro que quer dar cabo deles. Agora é verdade que o 27 de Maio é um marco. É a data em que acabam as várias fações da esquerda do MPLA. As últimas prisões de gente da OCA e dos CACs que foram sendo apanhados são em 1978. Digo que são cerca de 100 presos, mas eles eram muito mais. Não coloquei todos os nomes, porque não consegui a confirmação de toda a gente. 

Mesmo assim eram relativamente poucos, consta que na repressão ao alegado golpe do Nito Alves terão sido dezenas de milhares de pessoas presas, torturadas e mortas.

São universos completamente diferentes. A repressão aos partidários do Nito Alves é quase um genocídio, que até hoje não percebemos quanta gente abrangeu. Os tipos do Nito Alves eram para matar. Estes não. Alguns podem ter sido mortos. Mas a maioria dos CAC e da OCA “só” foram presos e torturados. Mesmo que tenham sido torturados barbaramente. Não os foram buscar às celas para os fuzilar. 

Um dos aspetos mais contraditórios e de certa forma até suicidários era a política do CAC durante a guerra: começam por criticar violentamente Rosa Coutinho, que era favorável ao MPLA, foram contra ao apoio dos cubanos quando Luanda estava sitiada a sul pela a UNITA e os sul africanos e a norte pela FNLA e os zairenses. Como se explicam estas posições? A certa altura Pepetela que tinha estado com eles, diz-lhes que agora era a guerra e era preciso um partido unificado sem guerras.

O Pepetela esteve meio ano a trabalhar com eles e tinha uma excelente impressão dos quadros do CAC. Analiso esse período que ele esteve com eles. Não falei com ele de outros episódios, como a sua alegada participação na Comissão das Lágrimas [Comissão das Lágrimas terá sido uma comissão integrada por intelectuais como Luandino Vieira, Pepetela, Manuel Rui, que teriam interrogado intelectuais envolvidos nos acontecimentos de 27 de Maio] . Na conversa que teve comigo confirmou que eram ótimos quadros e trabalhavam de manhã à noite. Ele pertenceu aos CAC e foi buscá-los porque eles eram os mais preparados politicamente. Mas eles eram muito jovens, eram aventureiros e de alguma forma suicidários. Tinham uma coragem muito grande, e isso é admirável. Eu fiz este livro porque eu os conhecia. Tinha um namorado que era CAC, mas na altura eu não sabia que ele era. E quando fui despedida do jornalismo, entre aspas, pensei que sabia muito pouco da minha terra, Angola, e comecei a investigar, a ler um livro por dia e a escrever. Não parei. Decidi fazer livros com a preocupação de contar coisas que ainda não tinham sido reveladas. Fazer um puzzle completo desta parte da história é quase impossível. Sobre o 27 de maio só é possível ter acesso aos sobreviventes e ao seu testemunho. Morreu demasiada gente. 

Essa alergia que o MPLA tinha, segundo escreve, à divergência, era devido ao estado de guerra que era pouco favorável a divisões, ou a um trauma com a sua história e as divisões anteriores, Pinto de Andrade, Chipenda, Revolta Leste, etc.?

Acho que é um prolongamento disso. Embora os CAC tivessem longe dessas histórias eram muitos jovens, o mais novo tinha 17 anos….

A primeira que é presa tem 16…

A Ana Major. Pode assim ter-se uma ideia da sua impreparação e inconsciência. Eles não tiveram a noção que o MPLA era um movimento com muita gente, com exército, serviços de informação, e com os cubanos e os soviéticos por detrás. Aquilo era uma luta impossível, era como a formiguinha contra um elefante. 

O que a surpreendeu mais nas conversas e o que descobriu que não contava?

Não sei. Até porque eu conhecia, mais ou menos, a história deles. Queria é que me confirmassem de viva voz. Eu própria fui observadora do movimento estudantil em Angola, que foi onde tudo começou.

É de Angola? 

Não nasci cá. Mas fui muito pequenina para lá. Fiquei muito marcada com isso. 

Fazendo a pergunta clássica, onde é que estava no 25 de Abril?

Estava no liceu. As notícias não chegaram muito rapidamente, até porque a censura se manteve. Nessa altura tinha 17 anos, era uma miúda que não tinha nenhum engajamento político, a minha família não tinha. Foi o 25 de Abril que me abriu os olhos para a política. A minha primeira reação foi com a de alguns brancos tiveram de medo: e agora o que se vai passar? Passou rapidamente.

Estava ainda lá durante os massacres nos musseques?

Só me venho embora em julho de 1975. Não fui com eles para os musseques, porque era mais jovem. Mas foi terrível. A determinada altura, quando o conflito se generalizou, nós íamos ao quintal recolher as balas com um cesto. Ao pé da minha casa não havia semáforos. Havia guerrilheiros de um lado e do outro. Quando uns disparavam e antes dos outros dispararem, a gente atravessava a estrada. Vivia na cidade dos brancos, como dizia o Réne Pélessier. Muitas vezes a terra tremia sob o som dos disparos das armas pesadas. Acho que é ainda preciso refazer a história dos brancos em Angola. No sentido de que não eram todos os tipos que andavam de chicote a bater e espezinhar o preto.

De alguma maneira os CAC ajudaram a deturpar o papel dos brancos progressistas em Angola, quando, por exemplo, atacaram os grupos organizados de brancos que eram contra o regime anterior.

Veio o 25 de Abril e eles lançaram-se. Faltava-lhes, como é próprio da idade que tinham, alguma maturidade, o que lhes sobrava em vivacidade e vontade de intervir.

Regressou depois a Angola?

Regressei nos anos 90 e em 2014, para fazer as entrevistas para este livro. A primeira vez fui como jornalista com um grupo de mulheres que trabalhava sobre planeamento familiar, e em 2014 estive 15 dias.

Como é que foi a sensação de voltar, tudo teria mudado como do dia para a noite, não?

Luanda é uma cidade muito complicada. Eu ia passear na cidade e era quase a única branca que via na rua. Até porque os outros brancos estavam normalmente a trabalhar no ar condicionado. É uma cidade muito difícil para os angolanos. As pessoas não têm dinheiro para os transportes. Viver em Luanda é muito complicado. Falta a luz, falta a água. Eu não conseguia viver lá. Não é por falta de condições, mas por causa da opressão a que o meu pensamento seria sujeito. Não conseguiria dizer o que pensava e seria impedida.

Mas há uma série de jornais angolanos que dizem do governo tudo e mais uma coisa, e pelos vistos não são impedidos. Como é que isso é possível?

Há uma aparente liberdade, mas depois, como se vê no caso dos jovens, quando a coisa chega muito longe, fecham. 

É possível comparar esses jovens do grupo do Luaty Beirão, com os CAC?

Politicamente não têm muito que ver: os CAC e a OCA tinham uma cartilha ideológica, marxista-leninista, e estes são um pouco espontâneos. Acho que o que os une é a coragem de dizerem o que pensam e de afrontarem forças muito mais poderosas. Têm similitudes nas formas de luta usadas, como as greves de fome e as campanhas internacionais. Os CAC e a OCA saírem em 80 depois de uma greve de fome e uma campanha internacional. Se não o tivessem feito a sua situação poderia ter acabado muito mal. Foi uma greve de fome que durou vinte e tal dias, em que acabaram no hospital.

No seu livro diz que a campanha internacional se limitou a poucos órgãos de comunicação social e a setores políticos próximos da então UDP.

Acabou por sair em dois ou três jornais estrangeiros. Cingiu-se mais em Portugal. 

É interessante que a listagem de ativistas dos CAC tem nomes importantes na sociologia portuguesa, como o Rui Pena Pires, e no ativismo, como o Timóteo Macedo. Achei muito interessante, até porque conhecendo alguns pessoalmente, desconhecia esse passado.

O Timóteo na altura parecia o Jesus Cristo. Os jovens usavam todos os cabelos compridos e eu lembro-me muito bem dele na época, sempre com um exemplar dos “Subterrâneos da Liberdade”, do Jorge Amado, que era uma espécie de manual de como fazer clandestinidade.

Ou como não fazer, porque nessa obra do Jorge Amado eles acabam quase todos presos. 

É verdade. Naturalmente, as pessoas do CAC também tinham muito pouca experiência conspirativa e muitos acabaram igualmente presos e fora apanhados facilmente. 

Também havia uma certa ingenuidade, não? Quando no começo da repressão, um dos principais dirigentes dos CAC resolve telefonar a Agostinho Neto e ao Nito Alves para discutir a repressão, e marca um encontro…

Eles não se conheciam. A grande questão com o Agostinho Neto, dá-se quando depois de algumas reuniões, por diferença de geração, Agostinho Neto concluí que eles não o respeitam. 

Qual é o próximo livro?

Antes disso, quero dizer uma coisa: quando eu escrevi o meu primeiro livro chamaram-me reacionária, porque contei coisas sobre a descolonização que algumas pessoas acharam que era desculpar o colonialismo. Talvez agora vão ler, esse livro, com outra visão. Saí do “Diário de Notícias” muito infeliz. Começo a investigar. O acontecimento que me levou a fazê-lo foi o desaparecimento do meu pai, na altura da primeira batalha de Luanda.

Foi como? Uma bala perdida?

Não. Estou convicta que quiseram ficar com os bens dele e deram-lhe um tiro e fizeram desaparecer o corpo, como aconteceu com muita gente. Não aceitei o seu desaparecimento. Fui procurar o processo. Ainda não sei o que lhe sucedeu. Sofri imenso durante a minha vida. Só fiz o luto quando escrevi esse primeiro livro. A minha vida é fazer reportagens em livro e contar cenas de Angola que nunca foram contadas.