Recordações dos meus avós

O meu avô, sendo médico, com consultório na Calçada da Ajuda, veio a ser um dos fundadores do Belenenses

Passar as férias com netos tem muito que se lhe diga… Viver e conviver diariamente é muito diferente de estar com eles de vez em quando. 

Tendo quatro (por enquanto), esta convivência diária na ‘perspetiva de avô’ fez-me pensar no que sentiria o meu avô Joaquim Boto, em Sousel, quando o ia visitar na Páscoa ou no Natal (refiro que não conheci o meu avô materno, Virgílio Paula, falecido cerca de dois anos antes de eu nascer). 

Sei que o avô Boto tinha um orgulho imenso em mim, que senti por várias vezes, desde tenra idade, mas sobretudo quando, em vésperas de me licenciar (outubro 1975), lhe apresentei aquela que seria um ano depois (e até hoje) a minha mulher, Ana Maria. 

Ele faleceria em 2 de novembro de 1975, exatamente 4 dias antes do meu último exame no ISEG.

Dele guardo diversas recordações. Lembro-me de que, quando íamos os dois até à Granja, ele descascava sempre uma laranja lima que depois me dava gomo a gomo. Era amarga como o raio, mas ainda hoje adoro o seu paladar. Ou quando íamos ao Álamo saber dos animais. Ou quando me sentou no seu colo, ao volante, e eu tive a sensação de guiar o automóvel. 

As idas a Estremoz ao sábado eram sagradas, num tempo em que se negociava gado no Largo da Feira, sempre com base na ‘palavra dada, palavra honrada’! Homem de ‘letras gordas’, aprendeu que na vida se sobe a pulso, com esforço e muito trabalho. Cresci nestes valores transmitidos de família, que diariamente tento honrar – e que creio ter conseguido transmitir, com a Ana Maria, às minhas 4 filhas.

Do meu avô materno ouvi muito falar através da minha Mãe (mas também, curiosamente, do meu Pai). 

Jogou futebol no Benfica na década de 1910. No meu quarto de criança havia uma fotografia dele integrado numa equipa desse tempo (que podemos hoje encontrar no restaurante Catedral no Estádio da Luz). Por ele fiquei Benfica, e vão cerca de 54 anos de sócio. Sendo médico, com consultório na Calçada da Ajuda, veio a ser um dos fundadores do Belenenses, talvez a ‘alma mater’ dessa fundação, dada a sua condição social. 

Mas o avô Virgílio foi também secretário-geral da FPF e presidente da Comissão Central de Árbitros – e foi nessa condição que conheceu meu Pai, Manuel José, dirigente e presidente da ‘sua’ Académica de Coimbra. 

Uma Académica de José Maria Antunes, Pica, Portugal, Bentes ou Tibério, uma equipa que fez escol de médicos ou professores – quer nessa geração quer noutras posteriores, como Manuel António, os irmãos Campos e tantos outros. 

Regressando ao meu avô Virgílio, sei que fez diversas viagens com a minha Mãe, algumas ao estrangeiro a acompanhar a Seleção Nacional e, quando conduzia, tinha paragens de 10 minutos estratégicos a dormir para se recompor (parece que saio a ele!). 

Quando via jogos do Benfica não saía das cabinas, tamanha era a nervoseira. Uma história curiosa foi-me contada por Acácio Rosa, nas minhas andanças de mais de 25 anos no andebol. Descreveu-me como o avô Virgílio fazia todas as inspeções aos atletas de todas as modalidades do Belenenses – tendo diagnosticado as doenças de Pepe e de Mariano Amaro sempre antes dos outros. Parece que, neste último caso, não o deu como apto para jogar, o que foi um escândalo na altura. O jogador não aceitou o diagnóstico, até que três meses depois bolsou sangue em campo durante um jogo.

Figura de referência em Belém e Ajuda, contava-se que tirava amígdalas aos pacientes com uma colher. Minha Mãe e a avó Alda garantiam-no, mas eu não acreditava. Até que um dia, por razões profissionais, almocei com um cliente de auditoria – e, no meio da charla, falei-lhe no Belenenses. A conversa saltou de imediato para o meu avô Virgílio, que lhe tinha exatamente tirado as amígdalas daquela forma! Coincidências absolutamente fantásticas. No seu funeral foi um mar de gente, sobretudo ciganos, a quem sempre deu consultas, na maioria gratuitas. 

Mas o seu funeral, em junho 1951, teve uma consequência. Meu Pai foi ao Jamor ver um jogo da Seleção, e houve 1 minuto silêncio pelo falecimento de meu avô. Saiu dali para os Jerónimos – e a 31 de julho de 1952 casou com minha Mãe. Dois anos depois nascia eu.