Corto Maltese. O marinheiro que nunca acabou a utopia

Este ano, Corto Maltese faria 130 anos, o seu autor, Hugo Pratt, 90 anos, e o primeiro livro da saga do marinheiro, “A Balada do Mar Salgado”, assinala meio século

Tudo começou na ponta de uma navalha: Corto Maltese, nascido a 10 de julho de 1887, em La Valletta, marinheiro e filho de uma cigana feiticeira andaluza e de um marinheiro britânico da Cornualha, não gostou da linha da sorte que viu na sua mão, e resolveu solucionar o assunto, rasgando uma mais do seu agrado. Da sua morte temos apenas algumas pistas, numa outra obra de Hugo Pratt, “Os Escorpiões do Deserto”, em que o guerrilheiro o guerreiro danakil Cush, em conversa com um fascista italiano, que acabará por matar, fala do amigo desaparecido na Guerra Civil de Espanha. Num livro sobre Corto constará que terá morrido fuzilado em Málaga, pelos franquistas.

Fez meio século, este ano, que Hugo Pratt publicou as primeiras pranchas da “A Balada do Mar Salgado”, a obra que inaugurou a saga de Corto Maltese.

O marinheiro mais conhecido da banda desenhada conta-nos um tempo que já passou, em que o mundo ainda tinha ilhas “escondidas” e espaços que permitiam fugir para a liberdade. Testemunha de alguns dos maiores acontecimentos do século, Corto tentava nunca se meter na História, acabando sempre por, de alguma forma, tomar partido. O marinheiro, ao contrário de outros heróis da banda desenhada, nunca teve a pretensão de fazer a história com “H” grande, contentava-se em ser uma testemunha cínica ao lado de uma mulher bonita. À imagem e semelhança de Rick em “Casablanca”. Infelizmente para os dois, acabavam sempre a ajudar os mais fracos e a ficar sem mulher.

As obras de Corto Maltese foram criadas, pelo seu autor, como fugas geográficas para a aventura: a busca de um tesouro, de um continente perdido, ou o simples transporte de armas para o IRA. Hugo Pratt, homem de vasta cultura – tinha mais de 20 000 livros na sua biblioteca – e de muitas viagens, é uma espécie de gémeo menos atlético e longilíneo do marinheiro. Soldado aos 13 anos, “o mais jovem soldado de Mussolini”, como confessou na sua biografia, “O Desejo de ser Inútil”. O seu pai, militar italiano, e responsável pela “exploração do trabalho indígena” na Etiópia, morreu num campo de concentração inglês. Cedo o veneziano Hugo Pratt teve que fazer pela vida.

Mas voltemos ao marujo. Em 1900, ele assiste na China à “guerra dos boxers”; está na Manchúria em 1904-1905, durante a guerra russo-japonesa; durante o início da Primeira Guerra Mundial, 1913-1915, faz pirataria no Pacífico; em 1916-1917, encontra-se na América Central e do Sul, onde encontra os cangaceiros; em 1917-1918, viaja pela a Europa: Veneza, Dublin, Stonehenge e depois nos campos de batalha em França e as praias do Mar do Norte; em 1918, passa pela Etiópia, Somália e colónias alemães em África; em 1918-1920, anda um pouco por toda a Ásia atrás do ouro do almirante das tropas brancas, Aleksander Kolchak; em 1922, ano que é colocada “Na Casa da Samarcanda”, passa por outra parte da Ásia, Turquia, Azerbeijão, Tajiquistão e Afeganistão; em 1923, está em Buenos Aires; em 1924, viaja para a Suíça; em 1925, vai às Caraíbas; de 1926-1936, quase não se sabe nada dele, tirando numa aguarela de Pratt, que o localiza em 1928-1929, na Etiópia onde encontra Henry de Monfreid e Tellard Chardin.

Finalmente, no segundo volume do “Escorpiões do Deserto”, ficamos a saber que Corto Maltese combateu nas Brigadas Internacionais em Espanha, e foi morto.

As aventuras do famoso marinheiro também se passam no meio dos livros e das suas referências. Pelo que sabemos, embora tenho tentado várias vezes, nunca teve tempo para acabar “Um pequeno livro verdadeiramente dourado, não menos benéfico que entretedor, do melhor estado de uma república e da nova ilha Utopia”, de Thomas Morus. Sobre os seus livros escrevia Umberto Eco: “Quando quero descontrair leio um ensaio de Engels, mas quando quero pensar a sério leio Corto Maltese”.

Nas “Célticas”, há um diálogo, pedido emprestado à fala a outro aventureiro, T.E. Lawrence, que resume o personagem: “Todo homem sonha, mas, não da mesma forma. Os que sonham à noite, no mais fundo das suas mentes, despertam de manhã para descobrir que tudo não passava de pensamentos vãos. Mas os sonhadores do dia são homens perigosos, pois podem lutar por seus sonhos de olhos abertos e convertê-los em realidade”.