Ryanair: preços baixos escondem más condições de trabalho

Os bilhetes são low cost  e a oferta não pára de aumentar. Mas as condições de quem trabalha na Ryanair estão longe do ideal: têm de pagar curso e uniforme, levar comida para o voo e vender oito raspadinhas por dia sob a ameaça de despromoção. 

Aos 25 anos, Sara (nome fictício)  concorreu à Ryanair, por ver na carreira de hospedeira algo com que poderia assegurar o futuro da filha, na altura com dois anos e da qual era a única tutora.

Passou em todos os testes mas calhou-lhe na rifa a base italiana de Brindisi, que fica a dois voos do Porto, obrigando por isso a que a filha ficasse entregue à avó. Aceitou as condições por necessidade mas, principalmente, por acreditar que a situação seria temporária e que facilmente conseguiria transferência para Portugal.

Começou por explicar a situação aos supervisores diretos, que a acusavam de ter vendas abaixo do que seria esperado e que, por isso, nunca atingia o nível exigido para poder ser transferida para uma base preferencial. Isto porque, na companhia, quase tudo se baseia nas vendas a bordo, que se tornaram mais exigentes ao longo do tempo.
Em bases de maior dimensão, cada tripulante tem que vender oito raspadinhas, um perfume e uma refeição por dia. A base de Brindisi, por ser mais pequena e fazer apenas rotas domésticas, não se rege por esta lista. Os tripulantes têm de conseguir vender, em cada dia de trabalho, um valor que no final represente pelo menos 1,50 euros por cada passageiro dos voos que realizaram. Caso essas metas não sejam cumpridas, são chamados à atenção, questionados sobre a forma como abordam os passageiros e ameaçados de que se não subirem as vendas, não conseguem as trocas que pretendem ou saem das bases onde estão. A juntar a isto está o pormenor de, em 2015, terem mudado as regras e as vendas terem passado a ser contabilizadas a nível individual e não da tripulação. «Agora é cada um por si. Criaram o sistema perfeito para que a tripulação esteja focada apenas em vender», conta Sara, ao SOL.

Transferência recusada

Quando Sara decidiu falar diretamente com o diretor dos recursos humanos da companhia, através de emails aos quais o SOL teve acesso, recebeu sempre como justificação para a recusa da transferência para Portugal o baixo valor das suas vendas individuais.

Sara tentou explicar que, por não ter o italiano como primeira língua, dificilmente conseguiria competir lado a lado com os colegas do país. Mesmo assim, esforçava-se para melhorar a língua e cumprir com todos os requisitos: não faltar, não chegar atrasada e não dar qualquer motivo para que o seu lugar na lista de transferências baixasse. Sem resultado, ao mesmo tempo que crescia a indignação: vários colegas iam sendo transferidos para bases portuguesas, mesmo com piores níveis de venda. 

Decidiu ir mais longe e ameaçar com uma greve de fome. Foi aí que, pela primeira vez, usaram como argumento o facto de Sara ter passado a chefe de cabine ao ter assinado, em 2014, contrato com a Ryanair. «Até ai, o meu contrato era com a Crewlink, que trata do recrutamento em cada país e oferece condições mais precárias», explica. Sara sentiu que os últimos anos de troca de emails sobre as suas baixas vendas tinham sido em vão e, por aconselhamento médico, está  em baixa psiquiátrica depois de episódios de crises de ansiedade e ataques de pânico e não pretende voltar a trabalhar na companhia.

Falhas legais

Por ser uma companhia irlandesa, a empresa baseia os contratos em Dublin, conseguindo assim fugir à legislação dos outros países. É desta forma que Fernando Rodrigues, dirigente do Sitava – Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos, justifica o facto de a Ryanair não autorizar, por exemplo, que os seus trabalhadores sejam sindicalizados. «Em Portugal isso é ilegal, mas esta companhia vive da desregulação», refere, lembrando, no entanto, que muito dessas ilegalidades acontecem em conivência com o Governo. 

Fernando Henriques lembra que, em 2016, o Sitava assinou um contrato coletivo com a associação patronal das empresas do setor do handling – serviços prestados em terra para apoio às aeronaves. 

O sindicato espera agora que o Governo publique uma portaria de extensão para que sejam abrangidas as empresas que não cumpram uma contratação coletiva, como é o caso da Ryanair. 

Essa publicação tem como prazo máximo o final de agosto mas, em sede de negociação, o governo admitiu ao Sitava que a companhia já ameaçou deixar de voar de Portugal caso seja obrigada a cumprir um contrato coletivo de trabalho.

O SOL tentou contactar a Ryanair, mas até ao fecho desta edição não obteve resposta.

Pagar curso e uniforme

Carla entrou para a Ryanair no ano passado. Para isso, teve de frequentar um curso inicial, que fica a cargo de cada trabalhador, e que pode ser pago por inteiro ou descontado no ordenado, sendo que esta segunda opção tem juros associados. Carla acabou assim por pagar 2400 euros – e não os 1900 que pagaria se conseguisse fazê-lo de uma só vez – diluído no ordenado do primeiro ano de trabalho. «E tive a sorte do curso ser no Porto e ter uma amiga que me ofereceu alojamento», conta, uma vez que a formação pode ser no estrangeiro e a companhia não se responsabiliza por viagens ou alojamento.

Também o uniforme tem que ser pago pelo trabalhador e esse valor é igualmente descontado  no ordenado do primeiro ano. «São trinta euros que retiram todos os meses, reembolsados no ano seguinte, também em tranches. Mas se eventualmente sair da Ryanair, o uniforme tem que ser devolvido», explica ao SOL.

Depois de retiradas essas prestações, o trabalhador fica com um ordenado baseado apenas nas horas de voo, deixando de lado o tempo passado no aeroporto, seja por atrasos, seja em formações ou briefings da companhia.
Carla explica que a ordem é trabalhar cinco dias e folgar três. «Mas dentro desses cinco dias, existem aqueles em que estamos de standby em casa e nos quais temos apenas uma hora para nos deslocarmos ao aeroporto se for necessário», refere.

E claro que, por não serem horas em terra, não são pagas. Assim como não são pagas as refeições durante os voos ou as férias que são obrigados a tirar durante a época baixa. «No caso da Suécia, onde trabalho, esse período acontece durante o Inverno. Aí, somos obrigados a tirar entre duas a quatro semanas de férias, que na verdade não são férias, é apenas uma forma de nos mandarem para casa sem ordenado», refere Carla, que vê aí uma oportunidade de poder vir a Portugal com mais tempo, ainda que para isso, não haja grande diferença entre um bilhete comprado por si ou por qualquer outro passageiro. 

«Usar o ‘staff travel’ significa que pagamos as taxas de aeroporto mais o preço da viagem que, neste caso, para nós é sempre fixo», explica, dando o exemplo da última viagem que comprou para Londres e que, se comprasse enquanto tripulante lhe custaria 40 euros e que, como passageira, aproveitando as promoções da companhia, lhe custou apenas doze. 

«Além disso, o ‘staff travel’ fica em lista de espera, ou seja, só voamos se houver vagas nesse voo, o que é sempre arriscado», explica.

Este verão, numa das vindas a casa, o voo de regresso atrasou-se, o que a obrigou a faltar ao primeiro dia de trabalho depois das férias. Essa falha deu direito a uma reunião em Dublin para justificar a falta, um aviso a que chamam de ‘first warning’ (se receber três, é despedida) e a um período de três meses sem direito a staff travel. «O mais irónico é que o voo que se atrasou era da Ryanair».