Sobre um tempo de harmonia entre religiões

Boughedir regressa a 1967 para falar de La Goulette, vila piscatória ao lado de Tunis, e de um tempo em que muçulmanos, judeus e católicos viviam juntos

Este é um filme carregado de nostalgia. É também um postal de amor a La Goulette, essa vila piscatória, porto mediterrânico a escassos quilómetros de Tunis, onde muçulmanos, judeus e católicos foram convivendo em harmonia ao longo dos séculos, conhecendo e participando nas expressões religiosas uns dos outros com respeito e reconhecimento.

Férid Boughedir, o realizador tunisino, mostra uma conformidade à beira de se estilhaçar, o convívio entre as três religiões monoteístas na orla do Mediterrâneo, escolhendo o tempo das grandes mudanças, 1967, nas vésperas da Guerra dos Seis Dias, a partir da qual o Médio Oriente deixou de ser o que era e a desagregação dessas comunidades inter-religiosas de séculos começou, perante a pressão das posições extremadas dos seus líderes.

A luta palestiniana haveria de abandonar o seu caráter essencialmente secular, Israel haveria de se deixar derivar à direita (com a ajuda dos trabalhistas), as monarquias petroleiras do Golfo (com a Arábia Saudita à cabeça) haveriam de financiar as suas madraças para exportar o integrismo fanático do wahabismo (da Al-Qaeda, talibãs, Estado Islâmico), Sadat haveria de pagar com a morte a ousadia da paz com Israel e os Acordos de Camp David e de Oslo haveriam de ser assinados e esquecidos.

Isso seria depois. “Um Verão em La Goulette” é o último estio nessa La Goulette feita das históricas misturas do Mediterrâneo, de uma cultura assente nas tradições de todos. La Goulette, ao mesmo tempo caldo e cadinho cultural das camadas, chegava ao fim, como Boughedir frisa no fim do filme.

Tal como a ameaça de guerra paira sempre como iminente em toda a história, há no filme sinais também de que a tolerância será a principal vítima. A guerra virá e, com ela, a fuga de judeus e católicos de La Goulette, por já não se sentirem bem-vindos no local onde nasceram e nasceram os seus antepassados.

Boughedir escolhe, como contraste, uma história de iniciação sexual. Três amigas de 17 anos, uma muçulmana, uma católica e outra judia que querem perder a virgindade e escolhem o dia 15 de agosto, dia da padroeira dos pescadores de La Goulette, Nossa Senhora de Trapani (Madonna de Trapani), para essa experiência acontecer. As três são filhas de três grandes amigos, compinchas de futebol na juventude, de cartas, copos e pesca desportiva.

Pelo meio anda como fantasma sempre vestido de branco o senhorio daquelas casas, velho azedo sem coração que não hesita em colocar na rua uma mãe com os seus dois filhos por não pagar a renda. É ele quem mete na cabeça da mãe de Meriem (Sonia Mankai) que é melhor a filha andar pela rua de véu para proteger a sua moral. Claro que Hadj Beji (Gamil Ratib) é um típico moralista disfarçado, alguém que pretende só para ele aquela beleza que um dia viu sem querer, nua, a tomar banho. Não lhe importa a diferença de mais de 50 anos entre os dois, ele só quer possuir em exclusivo aquele corpo jovem e deleitoso. E tenta comprá-la ao pai, tenta comprá-la com a renda de casa que o pai nunca mais teria de pagar.

Com este retrato de um tempo que não se repete na Tunísia ou no Médio Oriente, Boughedir também quer falar da sensualidade e da sexualidade, de como a beleza inspira os corpos, de como os corpos tocados pelo sol inspiram desejo, de como aos 17 anos se quer descobrir o mundo – o de fora e o de dentro, do amor e do sexo como expressão física desse sentimento. E até vai buscar Claudia Cardinale, tunisina que, embora não tendo nascido em La Goulette, aí passou muito tempo em casa da avó, para se interpretar a si mesma como a beleza que o cinema transformou em estrela e que antes foi uma jovem de 17 anos em La Goulette. E é como se fosse para uma última visita, antes de tudo mudar para sempre.