Da Escócia, com humor

Diane Spencer é ruiva, alta, atraente e comediante. O espectáculo chama-se ‘Spank’ – uma miscelânea de intérpretes e registos mais ou menos ordenados por dois mc’s medianos – e a rotina de stand-up de Diane é deliciosamente perversa e hardcore.

‘spank’, indeed. faz-lhe jus, supera-o, cada piada é como um estalo noutra pessoa: até parece que nos dói, mas não resistimos ao riso despregado. a páginas tantas, revela-nos que a sua fantasia é dormir com o príncipe harry e, a meio do acto, ordenar: «call my name».

a sala vai abaixo, sobretudo quando – sempre visual – miss spencer acrescenta que agora vai só ali desmantelar uma mina. estamos num ambiente underground. literalmente. num dos cerca de 300 venues do mastodôntico fringe festival, provavelmente o maior certame de comédia no mundo.

ao entrar pela porta roxa e em forma de vaca (sim, vaca), somos convidados a descer quatro lanços de escadas. pois, a sala do espectáculo esgotado com cerca de 400 pessoas é no piso – 4. sou obrigado a corrigir: não vai abaixo, vai acima. por ali acima, como se as gargalhadas verdadeiramente detonassem. diane tira cavilha após cavilha e segue o resto do show encostada num canto, abraçada ao namorado ciumento que vigia cada homem presente como um pitbull acorrentado ao dono.

nas ruas de edimburgo, há durante este mês de agosto meio milhão de pessoas novas a acotovelar-se alegremente com o outro meio milhão de residentes. a população duplica e mesmo assim desconfio-a insuficiente para dar vazão aos milhares de cartazes que anunciam centenas de espectáculos protagonizados por humoristas vindos de todo o planeta. há animação na rua, nos jardins, em cada esquina, nas salas tradicionais, nos bares, em tendas, e até – como vimos – debaixo de terra. os escoceses são hospitaleiros como nativos do alentejo e festivos como nortenhos ébrios. a paisagem e o clima lembram-me os açores, sinto-me em casa.

estou cá como representante português num evento de storytelling. além deste vosso escriba, um russo, um canadiano, uma búlgara, um escocês adepto ferrenho do rangers – carinhoso para com o benfica devido ao par de vitórias recentes contra os arqui-rivais do celtic –, um inglês, um francês, um israelita (o justíssimo vencedor).

três dias intensos entre ruelas, espectáculos, castelos, whisky e partilha de histórias. vou estrear-me em inglês perante uma plateia multicultural. sinto-me cidadão do mundo. bebo como um escocês, como em restaurantes indianos, franceses e italianos, falo com sotaque da américa, rio com gente das mais diversas nacionalidades, sonho cá voltar com outros portugueses. durante 72 horas, experiencio finalmente a comédia como uma arte maior. o meu amor resume tudo em poucas palavras: se a vida são dois dias, a escócia ainda nos ofereceu a ilusão de um dia inteiro de eternidade.

ii – 15:15

resumo absolutamente telegráfico da história contada no âmbito do grant’s true tales international storytellers – riddle’s court, edimburgo, 15 de agosto

sempre quis uma tatuagem mas nunca encontrei aquela, perfeita, com o simbolismo adequado. conheço quem a tenha. um amigo com um relógio impresso na parte interior do braço esquerdo, escondida, marcando para toda a vida dele a seguinte hora, 15:15. o seu pai era também o seu ídolo. um homem sábio, inteligente, divertido. a súmula dos seus muitos e sempre acertados conselhos seria «carpe diem».

apaixonado por relógios, ensinou o filho sobre a intuição do tempo. morreu às 15:15 e o ómega que usava seria do meu amigo por herança. preferiu que o pai descesse com ele à terra e mandou tatuá-lo na perfeição. após vários falhanços amorosos com mulheres que achavam obsessiva a sua homenagem ao pai, conheceu o amor da sua vida na feira do livro de lisboa – às 15:15. há inclusivamente uma foto para prová-lo. 15 meses e 15 dias depois do início do seu namoro, nasceu-lhes o filho. às 15:15. da lembrança de uma perda trágica, celebraram-se muitas alegrias.

saio do palco, por sorteio fui o 7.º dos 8 participantes. uma senhora na plateia pergunta se me apercebi da hora em que comecei a narrar a história. 15:15… l

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