Alphonse Allais. Aquele humor de cores violentas, dessas que nos vão aos queixos

Das esplanadas de café da Paris da belle époque, chega até um Portugal já sem cafés de tradição literária ou outra, uma antologia de um mestre do humor resgatado ao esquecimento por poetas

Certo só nos parece, pelo avançado da hora e tudo, como este tempo corre tanto que se esfalfa e só para chegar mais depressa a lugar nenhum. Já nem as diabruras do ócio, as guerras civis do tédio, e nem os cafés abalados como trincheiras onde desfazer a moral em licores ou enxotá-la como à mosca. Dá vontade – mesmo que o cenário se tenha alterado, já não haja círculos de gente chegando e partindo como ponteiros à volta de algumas mesas, antes esteja tudo tão disperso, e a rua seja só um lugar de passagem e transtornos vários – de citar O’Neill: “Que vergonha, rapazes! Nós práqui,/ caídos na cerveja ou no uísque,/ a enrolar a conversa no “diz que”/ e a desnalgar a fêmea (“Vist’? Viii!”)// Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito/ é esta videirunha à portuguesa,/ que às vezes me soergo no meu leito/ e vejo entrar quarta invasão francesa.”

Pior é que nem literariamente se faz o bigode à espuma dos dias. Os que escrevem afogam-se na intriga, e, na promessa de se entregarem ao corpo a corpo da baixaria política, deixam o espírito no bengaleiro, e ficam de um lado e do outro de zaragatas só erguendo as luvas dessas eloquências e retóricas que tanto nos aborrecem. Assim, logo depois do expediente, as ruas e as praças esvaziam-se, a noite cai e não há sinal dos Bárbaros nem de coisa nenhuma.

Então, do tão tumultuoso século XXI, alguns viram-se de costas, tiram os óculos 3D e põem os de ler, e é do passado, do tacho esquecido ao lume de outras épocas que chega o aroma dos espíritos dados à mais elevada calhandrice. Alphonse Allais é um desses majestosos antepassados, da viragem do século XIX para o XX, quando em Paris havia centenas de jornais, e ele, como recordava Umberto Eco, foi um desses míticos mercenários da inspiração, que usava o cajado do improviso para desfazer, não dois de uma vez, mas gerações de coelhos a cada golpe do seu humor brutal. “Mesmo quando não dava o melhor de si não deixava de ser irresistível”, garante Eco.

Ao incluí-lo na sua antologia do humor negro, André Breton fala do aroma que se levanta dos escritos de Allais como algo que raramente passa pela amargura, e que, no entanto, sai bem cedo de espingarda ao ombro dando a cheirar aos cães os trapos das muitas formas de ranço pequeno-burguês, da estupidez e egotismo que, de lá para cá, e enquanto praga, não viu os seus números diminuir, antes aumentar, mas conseguiu também neutralizar a crítica, tornando-se uma espécie protegida.

Na Cidade da Luz, os jornais tinham visto, nas décadas anteriores, o seu número de assinantes disparar. Em 1824, havia 47 mil assinantes, mas em 1846 este número já ia em 200 mil. E, como conta Walter Benjamin, no seu ensaio sobre Baudelaire, “um poeta na época do capitalismo avançado”, a assimilação do literato à sociedade em que se inseria consumou-se no boulevard. “Era no boulevard que ele tinha o seu reservatório de incidentes, de anedotas ou de boatos. No boulevard dava largas à exibição das suas relações com colegas e gente de boa vida: e estava tão dependente dos seus efeitos como as cocottes da sua arte de se fantasiar. (…) Deste modo, o valor da sua própria força de trabalho adquire qualquer coisa de quase fantástico face ao dilatado ócio que, aos olhos do público, é necessário para a sua realização plena.”

Nascido na Normandia, em 1854, não viveu muito mais do que o necessário (morrendo em Paris, em 1905) para que as suas narrativas, mais que um êxito de popularidade, constituíssem uma certa tradição. Textos que descompunham de todas as maneiras o conto, e que aperfeiçoaram a técnica do encontrão dado ao leitor de jornal – recorde-se que Allais se definia a si mesmo como um “escritor para caixeiros-viajantes” -, um destemperado cumprimento que logo se traduzia numa cumplicidade, agravada todos os dias, com os leitores aguardando junto à banca pelo número seguinte. Isto fez dele um desses vultos da boémia, herói da arraia, aclamado por uma lista fabulosamente distinta de admiradores como Alfred Jarry, Marcel Duchamp, René Magritte, Jean Cocteau, Raymond Queneau e Georges Perec.

Agora vamos ver porquê. A Exclamação, uma destas editoras portuguesas que entendem a negação do ócio por aquilo que é: um negócio de merda – para quê fazer tudo pela fortunaça se com isso se seca o terreno e não fica ninguém que tenha um palito para acrescentar à conversa? Se a cada chapa ganha se castiga e se condena à extinção aqueles espíritos que nos vão servindo de luzeiro? Ora, esta editora sediada na Invicta, chamou Rui Manuel Amaral para as funções de alfaiate de uma coleção literária bastante implicante, desde logo pela mania de vestir tudo do Avesso. Assim, depois da estreia com “As Notícias em Três Linhas”, de Félix Fénéon, surge como quarto título um contemporâneo à mesma altura, partilhando o gosto de afiar o dedo e escarafunchar a ferida, com “63 Histórias de Humor e 1 Poema Melancólico”

Antes de irmos saber mais sobre esta tão gorda quanto formosa recolha de narrativas gloriosamente chanfradas, uma nota para reconhecer a sedução minimal do aspeto gráfico da coleção. Nesta noite de lixo, os gatos que se reservam às rondas de subversiva vigilância nos telhados, gostam do papel pardo, do ajuste sóbrio com que seguram a luz no olhar. Estes livros têm o gosto de um envelope, desses que se traz ao peito, fugindo para cantos e ratando as horas de modo a escapar do inane bulício que fez da literatura uma espécie de código morse.

Filipe Guerra assina tradução, introdução, notas – tudo de um escrúpulo admirável. Uma prosa que, do francês ao português, não se põe com aprumos nem ademanes inúteis, mas traz aquele sotaque de uma boa pilhéria, uma forma de desmanchar a língua para os usos que fomos perdendo, com a falta de rua, para cair na oralidade perra de sofá, a ver pela televisão o bando dos atadinhos a dar aquelas voltas complicadas para empinocarem as suas trivialidades. Diante de uma coisa assim, de tão grandes cuidados esbanjados connosco, ficamos a olhar para este tomo bojudo e a pensar: Mas merecemos isto? É difícil, até porque mesmo para levar aos ombros esta vergonha, somos cada vez menos os rapazes.

Allais faz parte daqueles génios repescados. A sua época ria-se muito com ele, mas às vezes disso resulta um preconceito. Quando a graça está de tal modo no ponto que todos podem molhar o pão no seu azeite, dá a sensação de que tem algo de gratuito. Que é a própria sacanagem de um tempo que se deixa apanhar debaixo do seu copo, como um fumo numas nebulosidades acrobáticas entre convivas na esplanada do café. Só que depois o tempo vem, o papel amarelece, vira mortalha, e há coisas que se escapam, não se ficam pela mortalidade vã que serve ao resto. A respeitabilidade literária viria assim bem mais tarde, quando os dos movimentos começaram a fazer as partilhas, e deram tantas vezes com as pegadas de Allais na linha da frente, antes que os achados fossem descascados e circulassem como tiques gerais.

Naqueles dias, os boémios parisienses davam o nó à moral com uma “subversão controlada”, o que implicava não apenas um assalto aos boulevards, encher os cafés e cabarés, mas também contribuir para a sua atmosfera de espanto. “Para quem não o saiba, Allais escrevia na belle époque, recitava os seus monólogos no Chat Noir, de Paris, ao lado de Charles Cros, enquanto Erik Satie tocava piano, e é possível que sem tipos como ele não tivessem existido depois os dadaístas”…, nota Umberto Eco. Declarado o “chefe da escola fumista” – que, no fundo, não passava de um termo para referir-se a um estilo de vida que encarava a arte como arma para a provocação e a sabotagem, um modo de transgredir as normas e não permitir que a educação burguesa ficasse a rir-se -, Breton refere como Allais e o seu comparsa Sapeck reinaram no que toca a essa forma de tirar o chão aos outros, que passa por pregar partidas elaboradas. “Pode dizer-se que elevaram esta atividade a uma forma artística. O objetivo deles era nada menos do que praticar um terrorismo da mente numa multiplicidade de formas, que servia para assinalar esse defeito vulgar que leva as pessoas a condenarem-se a uma existência supérflua”.

 Filipe Guerra fala do poder que Allais exercia sobre a palavra, não mostrando quaisquer reservas ao colocá-lo a par dos melhores poetas do seu tempo. Mas se muitos destes acabaram por gozar do “obscuro prestígio” dos malditos, precisamente por só tardiamente alcançarem um reconhecimento mais vasto, alcandorados no cânone, este humorista tanto êxito teve com as suas sátiras, que se tornou um “herói dos estudantes e da boémia do Quartier Latin”, de tal modo que precisou depois que aqueles o puxassem do molhe.

Muito por cima da laracha, mesmo se não deixa de lhe tirar o chapéu, Allais estabeleceu situações de um humor espontâneo, tão suave e elegante como penetrante, com uma finura e um faro, prodigioso na destreza como lhe bastam duas pinceladas a partir de uma mistura de cores combinadas na paleta com os corpos esmagados e o sangue de moscas. E com elas tanto pinta um aristocrata, uma dama com ânsias de rapto e histeria, uma beata ou mais algum dos universais cretinos mas para lhes acertar nos queixos ainda lhes empresta caráter, rebentando as costuras do estereótipo. E não só é um maravilhoso retratista como trata o absurdo com umas tais confianças que o naturaliza, e ainda fideliza o leitor, por nunca falar para o boneco, mas dar-lhe o seu papel na trama. Assim, “o narrador mistifica o leitor, apanha-o desprevenido, estende-lhe armadilhas, surpreende-o pelo inesperado, tende a tornar-se um personagem de pleno direito que intervém constantemente na narração.”

Com o triunfo dos vesgos aspirantes nas páginas dos nossos suplementos, este livro pode passar como uma arqueológica curiosidade da estação. Seria um erro de todo o tamanho. Por aqui é que se trepam muros, se arranca a mordaça e ganham os dentes para fazer baixas no filão de cretinos que nos vai negando o ócio.