Jaçanã. E além disso mulher, tem outras coisas…

O “Trem das Onze” de Adoniran Barbosa tornou-se uma das mais populares músicas brasileiras. E pôs no mapa do mundo um subúrbio de classe média de São Paulo com nome de ave pernalta

“Não posso ficar/ Não posso ficar/ Nem mais um minuto com você…”

“Trem das Onze” tornou-se uma espécie de hino.

A canção tomava conta dos bares de chorinho na hora do fecho e era indispensável em qualquer grupelho de praia à volta de uma fogueira, como já foi hábito no tempo da juventude da minha geração.

E, afinal, onde fica Jaçanã? Que diacho de terra é essa que Adoniran Barbosa trouxe para as bocas do mundo?

“Sinto muito amor/ Mas não pode ser…”

A norte de São Paulo, começou por se chamar Uroguapira, nome este, convenhamos, bem mais musical.

Depois vieram as aves. Ou melhor: as aves até já lá estavam. Mas as pessoas começaram a reparar nelas. Jaçanã: penas negras, bico amarelo, tonalidades de castanho nas asas e na cauda, pernilongas, preparadas pela mãe natureza para viverem em zonas de arrozais.

Jaçanã ficou.

“Moro em Jaçanã…”

Bairro paulistano de classe média a partir dos anos 30.

Sede de hospitais famosos: Hospital Geriátrico D. Pedro ii; Hospital dos Morféticos, gente que sofria da praga da lepra; Hospital São Luís Gonzaga, local onde se fizeram algumas das primeiras cirurgias cardíacas.

Em 1964 tornou-se famoso por causa de uma canção: precisamente o “Trem das Onze”, comboio urbano que ligava o bairro de Jaçanã ao bairro de Guarulhos.

“Se eu perder esse trem que sai agora às onze horas/ Só amanhã de manhã…”

Adoniran Barbosa não se chamava Adoniran Barbosa. Chamava-se João Rubinato. Mas escolheu Adoniran como nome artístico. Lá saberia porquê.

Foi considerado o pai do samba paulista.

Os seus programas radiofónicos tinham uma enorme popularidade.

Também foi ator de teatro e de cinema. E humorista.

Nasceu de família remediada e tinha sete irmãos. Esqueçam, por isso, a brincadeira do filho único.

“E além disso mulher/ Tem outras coisas…”

Em criança distribuía marmitas aos trabalhadores das obras e esteve-se nas tintas para a escola.

Depois cresceu e teve o sonho de ser ator. Não esperava tanta oposição por parte daqueles que já estavam instalados na profissão.

Contrariado, rejeitado, teimou. Como dizem os brasileiros: “Foi que foi!”

A rádio abriu-lhe as portas da fama. Mas demorou.

Começou por cantar sambas brejeiros, composições alheias de pouca graça e muito mau gosto.

Depois dedicou-se a escrever letras num tom popular paulistano, desenhando a figuração típica de uma determinada sociedade marginal: os engraxates, o homem solitário e alcoólico, a mulher revoltada, o vendedor de bolinhos…

“Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar…”

As sua canções falam da vida comum, quotidiana, de gente que não pode perder trens, por exemplo.

“Sou filho único/ Tenho minha casa p’ra olhar…”

Fruto de uma família tipicamente italiana, João Rubinato foi até ao topo.

Um enfisema pulmonar tornou-lhe o final da vida bastante doloroso.

“Trem das Onze” transformou-se numa das músicas mais populares do Brasil. Apesar de já ter sido gravada anteriormente, é no Carnaval de 1964 que invade o Rio de Janeiro como uma onda gigantesca. Interpretada pelo grupo Demónios da Garoa, que dedicaria muito do seu reportório a Adoniran Barbosa.

Jaçanã ganhou um espaço no mundo lá fora da sua pequenez suburbana.

“Quaiscaligudum/ Quaiscaligudum/ Quaiscaligudum…”