Saiba por que Sócrates e o primeiro-ministro se odeiam

Costa e Sócrates só se tornaram amigos no governo Guterres. Mas a relação esfriou muito antes de Sócrates deixar de ser primeiro-ministro.

O amor é um combustível poderoso e, segundo o lugar comum, ‘move montanhas’. Na política, a mais-valia do amor é moderada e o potencial do ódio extraordinário – rebenta diques, explode pontes, implode famílias, provoca choques em cadeia. As possibilidades do ódio na vida pública são ainda mais extraordinárias quando esse ódio não é assumido e se exprime apenas por sinais e meias-palavras. É o que se passa há anos entre José Sócrates e António Costa.

Esta semana, o SOL revelou como o ódio de Sócrates em relação a António Costa remonta a um tempo muito anterior à prisão do antigo primeiro-ministro. Novas escutas incluídas no processo Marquês expõem a situação. Ainda António José Seguro era secretário-geral do PS, a 24 de julho de 2014 – mas já António Costa tinha apresentado a sua candidatura alternativa que culminou no processo das primárias –, José Sócrates afirma que quem deveria ser líder do Partido Socialista era o advogado Marinho e Pinto, que tinha acabado de ser eleito deputado europeu pelo Partido da Terra. “Marinho e Pinto devia ser líder do PS. É que, se por absurdo, Seguro ganhar, vai governar com quem?”. Sócrates afirma ainda que o advogado sempre foi muito seu “amigo” e que “sempre foi contra a corrente”.

No ano anterior, em 2013, Sócrates mostra a sua irritação com o facto de António Costa se ter recusado sentar na primeira fila aquando da apresentação do seu livro “A Confiança no Mundo”. “Ele é um merdas. Tinha lugar mesmo à minha frente, ainda o foram buscar à fila, mas ele não quis entrar. É porque já não ia com vontade…”.

Dois dias depois do lançamento do livro, numa outra conversa telefónica, Sócrates afirma que Costa tem ciúmes deles. O adjetivo que usa para qualificar o atual primeiro-ministro é o mesmo que usou na conversa da véspera: “Merdas”. A frase é a seguinte: “Os da direita estão cheios de medo [de mim] e o merdas do Costa está cheio de ciúmes”.

O que fica evidente nestas conversas é que, antes de António Costa se candidatar contra Seguro, José Sócrates dava a entender que queria voltar a ser secretário-geral do PS. Não acreditava que Costa avançasse contra Seguro: “O Costa não tem tomates para isso”, afirma.

 

Inimigos que se tornaram amigos (durante um tempo)

António Costa e José Sócrates vêm de mundos diferentes dentro do PS. Costa foi sempre apoiante de Jorge Sampaio, enquanto Sócrates era um protegido de António Guterres. Os dois só se tornam amigos à mesa do Conselho de Ministros durante os governos Guterres, quando Sócrates era ministro do Ambiente e António Costa ministro dos Assuntos Parlamentares e, depois, da Justiça.

Na época, descobriram que tinham algo em comum: irritavam-se os dois com a obsessão de António Guterres em consensualizar tudo, o que às vezes paralisava o governo. Eram ambos, na realidade, “animais ferozes”.

Queriam os dois ser secretários-gerais do PS quando chegasse a sua vez. A combinação de não se candidatarem um contra o outro foi revelada por António Costa em entrevista. Costa “deixou” Sócrates avançar, foi seu n.º 2, apoiou-o praticamente em todos os momentos enquanto foi governante, o que aconteceu durante dois anos. Sai do governo Sócrates em 2007 para ir para a Câmara de Lisboa.

Antes da queda do Governo Sócrates, Costa já não estava confortável com a ação do primeiro-ministro. As críticas públicas eram esporádicas, mas existiam – Costa foi comentador de televisão enquanto Sócrates era primeiro-ministro.

Quando o processo Face Oculta explode, em 2009, António Costa demarca-se de Sócrates e chega a admitir, em declarações ao i, que se Sócrates achar que se deve demitir, o PS saberá encontrar soluções internas. Sócrates fica possesso.

A distância entre os dois já é suficientemente grande quando Sócrates é detido, na madrugada de 22 novembro de 2014, dia da eleição de Costa como secretário-geral do PS. O primeiro objetivo de Costa é afastar ao máximo o PS – que a partir desse dia dirigirá – das suspeitas de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais que recaem sobre o antigo primeiro-ministro. Enquanto Sócrates dizia que o seu processo era “político”, Costa recusava ir por aí. Foi visitar Sócrates uma única vez à prisão de Évora.

Sócrates não perdoou a distância do seu antigo n.º 2 e a forma como impediu o PS de lhe mostrar solidariedade no seu processo judicial. Na entrevista à TVI, em outubro de 2016, Sócrates menorizou Costa, utilizando apenas uma forma mais urbana do que a que surge nas escutas: “É um líder em formação”.