As férias da infância de Jorge Roque da Cunha

Hoje é a vez de Jorge Roque da Cunha, presidente do Sindicato Independente dos Médicos, contar as suas memórias de férias

Nasci em em Angola e aí permaneci até aos 15 anos. Quando o assunto eram férias, Luanda era o destino mais almejado e também o mais verosímil. Lisboa era, no meu subconsciente, a cidade metrópole longínqua e também inacessível. Nessa altura os funcionários estatais aproveitavam a possibilidade de gozo da chamada “licença graciosa” para vir de férias à metrópole. Os meus pais eram ambos funcionários públicos e das quatro vezes possíveis só usaram por uma vez essa licença, tinha eu os meus 13 anos. 

Como o dinheiro não abundava,  aproveitávamos esse período para conhecer  Angola e visitar os muitos amigos que fomos fazendo. Na minha infância, quer Lisboa, quer qualquer outra capital europeia, estavam muito longe do meu coração e da minha cogitação.

Os preparativos para ir para casa do meu tio, irmão do meu pai, militar e comandante da polícia que vivia em Luanda, eram um momento de animação. Por volta dos 8 anos, os momentos que precediam a partida eram um misto de excitação, pela ânsia mal disfarçada de partir em viagem e o enfadamento de me certificar se na pilha de roupa separada por mim apressadamente nada era esquecido. Já na altura, tal como agora, as minhas preocupações com os assuntos de roupagem eram quase imperceptíveis. 

Durante esse mês e durante apenas uma semana podia contar com a presença dos meus pais. As restantes três semanas eram um verdadeiro desafio ao livre exercício da minha autonomia ainda incipiente. Nesse período estava-me guardado um tratamento de príncipe onde a estima e o amor do meu tio pelo sobrinho e afilhado eram uma constante. A tudo isso, eu tentava retribuir com a minha inata boa disposição, colaborando de forma espontânea nas pequenas tarefas domésticas. Sempre procurando manter o meu estatuto de sobrinho bem comportado e simpático para que que no ano seguinte continuasse a merecer o privilégio de continuar a passar as férias na capital.

Todos os momentos destas viagens eram excitantes e inesquecíveis.  As viagens de avião, nos DC 10 da TAAG, linhas aéreas de Angola, designação que nunca esqueci, eram sempre animadas e muito concorridas. Fui a Luanda na primeira vez acompanhado. Depois comecei a fazê-la sozinho. À chegada a inesquecível imagem da magnífica baía e ilha de Luanda, com prédios gigantes e imensos carros, grandes carros, e as calorosas boas vindas dos meus tios e primos mais novos.

Outro momento gravado nas minhas memórias era o sabor da sopa de pedra cuidadosamente preparada pela Srª Maria, empregada de muitos anos dos meus tios, e que mais tarde reencontrei quando vim definitivamente para Portugal, que aos domingos nos presenteava com tamanha iguaria. O sabor e aroma da sopa, esse ficou apenas e para sempre nas memórias, não por falta de transmissão da receita mas porque o sabor nunca mais foi o mesmo.

Os serões sucediam-se na casa do meu tio com a presença de amigos que se reuniam em animados convívios com o objetivo de partilhar as alegrias de casais jovens e abrandar a saudade da metrópole. A música da moda em discos de vinil rodava ininterruptamente no gira-discos. Ao som dessa melodia eu e mais alguém que sempre aparecia com idade próxima da minha brincávamos a jogos simples e tradicionais sem dar conta do passar das horas.

Outro ponto alto eram as idas à praia que incluíam o ritual de preparar o almoço elaborado à base de saborosas sandes de atum, omelete variadas, presunto, fruta colorida e suculenta e sempre muita água. Os passeios eram distribuídos pelas praias mais próximas do rio Bengo. O rio Bengo é um rio que corre a província, desaguando no Atlântico a cerca de 20km a norte de Luanda interrompido no seu curso por pequenas cascatas e, nas zonas mais baixas, por belos lagos e lagoas. Eram tardes mágicas….

Os fins de semana eram destinados à ilha do Mussulo, um banco de areia com cerca de 30 km de comprimento, na costa sul de Luanda, que obrigava a uma curta viagem de barco. Este banco era alcançado de um lado por gigantescas ondas e do outro acariciado por calmas e tépidas águas. Era aí que atracávamos o barco e transportávamos as dezenas de caixas repletas de mantimentos e bebidas para a churrascada prevista. Era o mesmo pontão que durante a maré alta servia para mergulhar, para a pesca e também para as despedidas nostálgicas ao fim do dia emolduradas por um pôr do sol de beleza única.

Lembro-me de estar na companhia do meu irmão mais novo Carlos Jorge. Recordo a areia firme da praia, essencial para a construção de castelos e de intrincados canais onde a solidez  desafiava as leis da natureza e o amadorismo dos construtores. Inesquecível também a brisa de fim de tarde ou a intensidade e o dourado do pôr do sol com um súbito e não avisado aparecimento da negra escuridão vestida de noite, devido ao fato de nesta terra não haver crepúsculo.

Uma vez que não tínhamos televisão, sedimentei um genuíno prazer pela leitura de jornais, livros de aventuras e até várias biografias de cientistas. Os jogos limitavam-se às cartas, às damas e ao Monopólio.

Por vezes, à noite, íamos ao emblemático cinema Miramar de Luanda. Era impossível alguém não se comover com a magia deste cinema construído ao ar livre onde a visão de um écran gigantesco alternava com uma soberba vista para a baía e ilha da cidade. Os personagens famosos das películas ganhavam vida e nas noites seguintes povoariam os meus sonhos.

Outro dos momentos aprazíveis era lanchar no bairro da Mutamba, uma zona da moda, um prego no pão e uma Coca-Cola gigante, que era proibida na metrópole. Em alternativa ir ao Largo Baleizão onde ficava situada a gelataria que tinha os melhores gelados de Luanda ou do mundo, pensava eu. Na altura, comer um gelado de cone, produto de invenção recente, era um ritual muito fazia as delícias de qualquer um. Um passeio em jeito de mini Safari às margens do rio Bengo para ir ver animais selvagens era outro programa que ocupava o top ten dos mais pretendidos. 

Outro grande momento, mais pela carga emotiva associada, era o reencontro com os meus pais depois de três semanas de ausência. Era vivenciar o amor terno e forte condimentado pela saudade que se tinha sedimentado em mim sem eu me aperceber e que se soltava nesse momento para me tomar numa emoção que me sacudia por dentro. Era também comovedor ver o seu reencontro com os meus tios que selava a sua evidente estima e saudável convívio que ainda hoje se mantém praticamente todos os dias. 

Das memórias menos agradáveis ficou o último dia de férias que era destinado ao regresso ao aeroporto, efetuado no carocha do meu tio, onde à nostalgia do fim de férias foi acrescida a percepção da miséria e pobreza dos bairros que íamos atravessando onde as condições de vida eram até então ingenuamente ignoradas por mim. 

Depois de 1975, voltei uma única vez como Observador Internacional nas primeiras eleições legislativas depois da guerra colonial. Quando aterrei a primeira imagem que tive foi a da Ilha de Mussulo. Não confesso nostalgia. Mas senti um prazer em tudo semelhante às aventuras aí vividas.