Operação Marquês. Motorista queixa-se de ordens para transgredir

João Perna confirma esquema das transferências de dinheiro e diz que o patrão, José Sócrates, o obrigava a infringir as regras de trânsito. Ao ponto de temer ficar sem carta.

Operação Marquês. Motorista queixa-se de ordens para transgredir

O alegado ‘esquema’ financeiro entre José Sócrates e o seu amigo Carlos Santos Silva era afinal um segredo de polichinelo. De facto, um ex-vice presidente da Câmara da Covilhã e amigo do antigo primeiro-ministro, Carlos do Carmo Martins, também conhecia o truque. 

Numa conversa com João Perna, motorista de Sócrates, no final de setembro de 2014, Carlos Martins diz-lhe saber que o ex-primeiro-ministro recebe «através da outra pessoa». E percebeu isto porque foi Carlos Santos Silva quem lhe fez chegar o dinheiro para, no norte, comprar massivamente exemplares do livro A Confiança no Mundo. 

Nessa conversa, Perna confirmou o esquema e queixou-se da quantidade de trabalho que tinha e do facto de Sócrates querer reduzir-lhe o ordenado para metade. «Divorciei-me, fiquei com as despesas e, com o horário que tenho, almoço e janto em Lisboa. Tirando os dias em que ele [José Sócrates] vai para fora, faço 14 horas por dia», lamenta-se o motorista.

‘Ele não arranja outro’

Carlos Martins mostrou-se solidário com Perna, afirmando mesmo que Sócrates «não arranjaria outro» como ele. Ao que este responde que trabalha para o antigo primeiro-ministro porque mais ninguém o quis fazer.

Confidencia: «Os motoristas oficiais não o quiseram. Ele sabe que tem um feitio especial. O motorista que me substituiu numa baixa ligou-me ao fim de dois dias e disse mal dele em todo o lado. Era um motorista reformado do Estado».

Depois de confirmar o feitio difícil do antigo primeiro-ministro, Perna queixa-se das coisas que este lhe pede para fazer e adianta mesmo recear perder a sua principal «ferramenta de trabalho», a carta de condução, devido aos caprichos de Sócrates.

«Qualquer dia fico sem carta por culpa de Sócrates e ele nem sequer me ajuda a resolver isso. Ainda hoje de manhã, quando íamos para o aeroporto, mandou-me passar o vermelho junto à casa dele. Tenho medo de ficar sem ferramenta de trabalho. Há multas que pago do meu bolso e nem lhe digo nada, são multas que apanho por causa dele», desabafa o motorista.

Dinheiro vivo entregue em Paris em malas 

João Perna, que está indiciado por fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e detenção de arma proibida, é visto pelo Ministério Público como uma das peças fundamentais da Operação Marquês. As escutas feitas revelam viagens frequentes a Paris onde, alegadamente, entregaria dinheiro vivo a José Sócrates, escondido em malas. Este dinheiro pertenceria a José Sócrates mas circulava através de contas em nome de Carlos Santos Silva.

Quanto a Carlos do Carmo Martins, é um homem forte do aparelho socialista na Covilhã. Para além da adjudicação de um contrato de mais de 58 mil euros para a elaboração de um plano de pormenor, em agosto de 2014, à empresa Proengel, de Carlos Santos Silva, por parte da autarquia, Martins terá, segundo a revista Visão, disponibilizado contas bancárias pessoais para transferências que beneficiariam o antigo primeiro-ministro, além de ter desempenhado funções posteriormente atribuídas a João Perna.

Amigo de Sócrates há mais de 30 anos, Carlos Martins também já foi associado a outros casos jurídicos mediáticos. Em 1997 o seu nome apareceu relacionado com o alegado favorecimento de um dos concorrentes ao aterro da Cova da Beira, um processo que demorou dez anos a ser investigado e acabou sem condenações.

Dois anos antes, o nome de Martins fora parar aos radares da Polícia Judiciária por causa de uma conversa entre José Sócrates e um empresário preterido num concurso para a construção da Biblioteca Municipal da Covilhã. Na conversa, Sócrates diz ao empresário: «Isto fica somente entre nós. Eu vou pedir ao Carlos Martins que te faça um telefonema. A mim, ele ajudou-me cerca de dez anos e não me ajudou apenas a mim, ajudou o Guterres, que é uma excelente pessoa para nós».

Felícia Cabrita e Joana Marques Alves