EUA. Não era senão um prelúdio; onde se apeiam estátuas…

Às primeiras horas de 21 de agosto, quatro estátuas de figuras da Confederação eram retiradas dos seus pedestais no campus da Universidade do Texas. No mesmo mês, E Tudo o Vento Levou saía de cartaz num teatro no Tennessee. Onde irá parar este movimento revisionista?

EUA. Não era senão um prelúdio; onde se apeiam estátuas…

É bem conhecido o aforismo de Heinrich Heine: «Não era senão um prelúdio; onde se queimam livros, terminar-se-á por queimar pessoas». Retirado da tragédia Almansor (1823), o juízo impressiona por variadas razões. O poeta alemão Heine (1797-1856), judeu por nascimento, converter-se-ia ao Protestantismo em 1825, poucos anos após ter escrito as linhas acima citadas. A conversão assegurar-lhe-ia, nas suas próprias palavras, o «bilhete de ingresso na Cultura Europeia»; poupar-lhe-ia, supostamente, a discriminação antissemita, que era então um escolho à carreira académica de Judeus na Alemanha. O ingresso na Cultura Europeia ganhou-o por mérito próprio e pela porta grande, mas não pela meritocracia mais mesquinha de uma carreira universitária alemã. Com efeito, tal como ao jovem mouro Almansor, que abandonara a Granada recém-reconquistada pelos Cristãos, coube a Heine o longo exílio de um quarto de século na tolerante Paris, onde terminaria os seus dias.

Em 1834, num trecho premonitório extraordinário sobre o risco de que, soçobrando o Cristianismo na Alemanha, o Paganismo ancestral pudesse libertar fúrias insuspeitadas, levando o martelo de Thor a obliterar as catedrais góticas, Heine insere um novo aforismo: «O pensamento precede a ação tal como o raio precede o trovão». Não espanta assim que Heine fosse uma verdadeira bête noire do movimento nazi e que os seus livros estivessem entre aqueles que os estudantes universitários mais entusiasticamente lançaram para as piras, atiçados pelo verbo venenoso de Goebbels, no dia 10 de maio de 1933, um pouco por toda a Alemanha. Na Praça da Ópera em Berlim (Opernplatz, hoje conhecida como Bebelplatz), existe hoje um memorial daquele dia sinistro, em que cerca de vinte mil livros foram queimados na presença de Goebbels. Com toda a justiça, o premonitório aforismo retirado do Almansor de Heine foi escolhido para a inscrição que acompanha o memorial.

 

Símbolos de opressão?

Avancemos até às primeiras horas de 21 de agosto último, quando, um pouco pela calada, quatro estátuas de figuras da Confederação foram retiradas do campus da Universidade do Texas em Austin. Entre elas figurava a do general Sulista Robert E. Lee. Este ato terá tido como justificação evitar a controvérsia no recomeço do ano letivo que se apresta naqueles recintos. Justificação tanto maior quanto os desacatos sobrevindos a 12 de agosto em Charlottesville, na Virgínia, e que causaram uma comoção nacional, tinham tido origem numa outra estátua daquele general.

Estátuas que homenageiam as figuras maiores da Confederação foram erigidas nas décadas seguintes ao fim da Guerra Civil, um pouco por todo o Sul dos Estados Unidos. Uma boa parte dessas estátuas deveu-se à iniciativa de ligas femininas de viúvas e de filhas de soldados que tinham lutado pela Confederação e marcam um período de ressurgimento da supremacia branca nos Estados Sulistas, sob a égide do Partido Democrata, note-se. É compreensível que a maioria da população negra as possa ter interpretado então como símbolos da opressão a que estava sujeita, opressão codificada nas chamadas ‘leis de Jim Crow’. Estas leis institucionalizaram a segregação racial no período que se seguiu à reconstrução do Sul e aí vigoraram até à década de 1960.

Assim, aparentemente, a questão não levanta problemas: justiça foi feita ao apear estátuas que poderão ter presenciado no passado linchamentos em árvores próximas. No entanto, resta um travo amargo e insinua-se a ideia de que não se trata senão de um prelúdio e de que onde se apeiam estátuas terminar-se-á por…

Com efeito, também no decurso do mês de agosto agora findo, o Orpheum Theatre em Memphis, no Tennessee, retirava do seu cartaz E Tudo o Vento Levou, por ter determinado que o clássico de 1939 era insensível para um largo segmento da população local. É um facto que a população negra em Memphis ultrapassa os 60% e que o filme não é imune ao paternalismo branco. Mas, seguindo esta senda, onde se irá parar?

 

Lincoln e a procrastinação da abolição da escravatura

Robert E. Lee, figura tutelar na Virgínia do período pós-guerra civil, ganharia uma aura histórica menos ofuscada pela de Abraham Lincoln, caso não tivesse estado esse grande general Sulista ao serviço da Lost Cause. A atitude de Lee perante a instituição da escravatura, ele que era um elemento de famílias patrícias terra tenentes na Virgínia, era muito matizada pela sua formação cristã. No entanto, Lincoln, também ele, tivera – como poderia ter sido de outra forma? – uma relação atormentada com a questão da escravatura. A Proclamação da Emancipação teve um parto lento e doloroso e só surgiu da pena do Presidente em janeiro de 1863, quase dois anos já decorridos sobre o início da Guerra Civil (abril de 1861). E a emancipação dos escravos abrangia então só aqueles que vivessem nos Estados em rebelião contra a União. A verdadeira abolição da escravatura (Thirteenth Amendment) surgiu no início de 1865, quando Lincoln era Presidente-eleito para o seu segundo mandato. Que atitude deveria sancionar tanta procrastinação? O encerramento do Lincoln Memorial? Ocorre citar um verso do De Profundis, o bem-amado Salmo 130: «Se tiveres em conta os nossos pecados, Senhor, quem poderá resistir?».

O que se propõe para estes velhos problemas que não têm e nunca terão soluções simples? Por vezes, a atitude de tolerância é em si mesma mais importante do que propriamente esta ou aquela ação específica. Não havendo esperança em encontrar tal bálsamo nas palavras do Presidente Donald Trump, socorramo-nos da Cinemateca Americana e escolhamos uma película de John Ford que leva o ano de 1953: The Sun Shines Bright (O Sol Nasce Para Todos). Trata-se do remake de um outro filme que Ford realizara quase duas décadas antes. Confessadamente, era o filme favorito do realizador. O autor destas linhas acabou de revê-lo há poucos dias – em boa verdade, tê-lo-á visto repetidamente ao longo de algumas décadas. Guardava a vaga impressão de que o enredo, situado no Kentucky do início do século passado, tinha pertinência para este recente apear de estátuas um pouco por todo o Sul. Não podia estar mais certo. Precisa-se urgentemente do espírito do Juiz Priest, personagem central do filme, adoravelmente interpretada por Charles Winninger. Aconselha-se vivamente o leitor a ver, ou a rever The Sun Shines Bright e a emocionar-se, pretensos paternalismos à parte.