As rochas, o mar e a voz do coração

‘Quando estiver na praia, vá até às rochas e ouça bem a voz do mar a bater nelas. Tenho saudades de ouvir essa voz. Faça isso por mim, que já não vou poder fazê-lo’.

Por muitos anos que viva, jamais esquecerei a história que hoje venho partilhar e que se presta a muitas e diferentes interpretações.

Estava a começar as minhas férias e passeava descontraído junto à falésia da Praia da Rocha numa manhã calma cheia de sol. Por mim passavam muitos pais com crianças ao colo a caminho da praia, confiantes num futuro risonho para os seus filhos. Para me proteger do sol, encostei-me à parede – de modo a beneficiar da sombra do enorme toldo do Safari, que cobre toda a esplanada daquele magnífico restaurante, com uma vista privilegiada sobre o mar, mesmo no coração daquela praia algarvia. 

De repente, o meu telemóvel tocou. Alguém me queria contactar, mas não identifiquei o número. Era a Isabel, uma doente que acompanhei vezes sem conta no centro de saúde. Pensei tratar-se duma aflição qualquer, visto ela saber que eu estava de férias. 

Recordo o diálogo: «Quero pedir-lhe um favor: quando estiver na praia, vá até às rochas e ouça bem a voz do mar a bater nelas. Tenho saudades de ouvir essa voz. Faça isso por mim, que já não vou poder fazê-lo. Estou só em minha casa e preciso de falar com alguém»

Surpreendido com o pedido – e fazendo um esforço para não dar parte de fraco –, tentei desviar a conversa. Mas perante a sua insistência, respondi: «Isabel, prometo-lhe que vou fazer tal qual como me está a pedir».

Quando cheguei junto às rochas, esperei por uma onda e aguardei a rebentação. A voz do mar era difícil de descrever, e a água mais gelada do que nunca. 

Fechei os olhos e, numa viagem pelo passado, vi a Isabel desde a sua entrada no meu gabinete ainda pelo seu pé, e a falar claramente, até à altura em que, numa fase mais avançada da sua doença neurológica, já se arrastava com canadianas, a sua voz era difícil de entender e as funções vitais começavam a ficar comprometidas. Toda a sua história desfilou naquele momento pela minha cabeça, lembrando-me daquilo que o meu pai dizia muitas vezes: «Não é fácil ser-se médico».

Esta história, na sua globalidade, permite pôr em destaque três realidades diferentes. Primeiro, a forte ligação médico-doente; depois, o exemplo de coragem de uma doente que, sabendo a sua sentença de condenação, nunca baixou os braços e lutou até ao fim; por fim, a necessidade de investimento nos cuidados continuados e paliativos.

Fica aqui bem demonstrado que um médico não é, nem nunca será, um profissional igual a um vulgar funcionário público, com o seu horário a cumprir e o salário definido. 

É muito mais do que isso. É que, acima dos compromissos profissionais, há uma coisa chamada ‘vocação’, exigindo uma dedicação total e uma disponibilidade permanente que já nasce com todos aqueles que se entregam a esta vida de alma e coração. 

Nem todos compreendem estas características, mas são elas que nos distinguem dos demais trabalhadores. O número do telemóvel particular, dado excecionalmente a uma doente em situação de extrema gravidade, valeu-lhe mais naquele momento do que qualquer terapêutica farmacológica.

A situação complicada desta doente é uma autêntica lição para todos nós que, por tudo e por nada, protestamos e nunca nos conformamos com as ‘mazelas’ próprias do dia-a-dia, nem com a realidade do envelhecimento. 

Por isso, as consultas de Medicina Familiar estão cada vez mais cheias de pessoas que não estão verdadeiramente doentes, apresentando ‘problemas’ de que ninguém se pode livrar. E que andam descontentes, desconfiadas, agressivas até, como se os médicos fossem os causadores de todo o seu mal-estar, chegando mesmo a acusá-los de não serem capazes de lhes aliviar o sofrimento.

Ao invés, as pessoas como a Isabel sofrem em silêncio, conformadas com a sua sorte. E a experiência diz-nos serem as que mais aceitam a sua cruz, por vezes bem pesada, e que carregam até ao Calvário das suas vidas.

Finalmente, o problema dos Cuidados Continuados e Paliativos – também aqui posto em evidência – chama-nos a atenção para uma realidade da qual só nos apercebemos quando a desgraça nos bate à porta e damos conta que é fundamental investir. Organizemo-nos nesta cruzada e demos todos as mãos. Ergamos a voz. Todos somos necessários.

Nunca mais ouvi a voz da Isabel. A voz do mar ao bater nas rochas, ouço com frequência; mas quando passo naquele local, há uma outra voz que ouço sempre: a voz do coração!

Nota – Trata-se de um caso da vida real, mas o nome da doente está trocado