John Ashbery. O eterno conversador que alterou o ouvido da poesia

O poeta norte-amerciano, um dos últimos vultos incontornáveis da literatura do século XX, morreu este domingo em casa, aos 90 anos, de causas naturais

Era preciso que ele morresse para que o desmantelamento da linha do horizonte que a poesia moderna nos legou deixasse de ser uma suspeição. Depois das mortes de Derek Walcott, Ferreira Gullar, Herberto Helder e Tomas Tranströmer, a profecia de Charles Simic sobre o tempo dos poetas menores que estaria para chegar já não perturba o sono a ninguém. É mesmo para o lado que os nossos dias dormem melhor. Já assim, foi com uma boa dose de discrição que John Ashbery morreu na manhã de domingo, aos 90 anos. Desde há muito um dos mais distintos entre a espécie mutante que causa arrepios às convenções literárias, o poeta norte-americano, tantas vezes referido como provável candidato ao Nobel, morreu de causas naturais na sua residência, em Hudson (Nova Iorque), ao lado do marido, David Kermani.

Ashbery teve o enorme mérito de se afirmar como uma das mais influentes figuras da segunda metade do século XX na literatura norte-americana e por todo o mundo entre os que gostam de poesia, e isto sem nunca afrouxar o desafio aos imperantes modelos da narrativa, indo para lá do ceticismo e tornando a sua obra uma leitura que entretém fascinantes suspeitas em relação à conversa que se ouve nas bodegas literárias.

Se permaneceu uma presença enigmática, e até algo remota, manifestou, não poucas vezes, a sua frustração sempre que a sua poesia era tomada como obscura ou inacessível. E ainda que tenha sido dos poetas que mais sentiu o parasitismo dos epígonos, isso não levou a que, apesar do entusiasmo da crítica, alguma vez tenha conquistado grande popularidade. Defendia que, ao contrário de um certo alheamento, os seus poemas buscavam essa dimensão privada que há em todos nós, as dificuldades em que se mete o nosso pensamento. Nesse sentido, “são acessíveis a partir do momento em que alguém se interesse em aceder-lhes”.

O contraste entre a aclamação pelos seus pares e uma recepção fria por parte do público marcou todo o seu percurso, tendo Ashbery marinado nos círculos avant-garde antes de, em 1976, a reputação ter começado a precedê-lo, com a coleção de poemas “Auto-Retrato num Espelho Convexo” – que integra, em parte, a antologia com tradução e posfácio de António M. Feijó, dada à estampa em 1995 pela Relógio d’Água – a tornar-se o primeiro livro a ser triplamente coroado com o Pulitzer, o National Book Award e o National Book Critics Circle, os principais prémios no circuito do livro norte-americano.

Além disso, Ashbery foi também o primeiro poeta vivo a ter um volume dedicado exclusivamente à sua obra no catálogo da Library of America. E, em 2011, recebeu das mãos de Barack Obama a medalha National Humanities, tendo a sua obra sido exaltada por ter “mudado a forma como lemos poesia”. E, de facto, a sensibilidade que os seus poemas vão maturando exige e conduz a um estado de consciência mais elevado e dinâmico. Como notou o crítico John Bayley, as suas coleções de poemas refletiam literalmente essa lógica interna de leis inventadas e que servem apenas para o universo específico, sofregamente privado de um colecionador. O crítico refere que Ashbery, que colecionou toda a vida obras de arte, livros e outros objetos, nos seus poemas seguia o mesmo ímpeto, “reunindo curiosidades e profundidades, anedotas, confissões, truques, inventários de objetos, os nomes de atores de segunda, os nomes de filmes, os nomes de flores, e assim sucessivamente”. Os seus poemas eram, em parte, unidades de armazenamento, em parte, o estado de maravilhamento, sublinha Bayley.

É isto que faz com que seja fácil perder-se num poema de Ashbery como num sótão atafulhado de mobília antiga e velhos objetos de valor sentimental e que, sem o afeto e as lembranças para lhes dar vida, passam por lixo. Mas essa baixa intensidade, essa linguagem que se funde musicalmente numa meditação, que leva a uma tontura, como aquelas que sentimos sempre que se entra num espaço furiosamente privado. “Os poemas dele sempre guardaram os seus segredos, às vezes desafiadoramente, mesmo quando tanto o poeta quanto eles se tornaram cada vez mais conhecidos”, nota uma vez mais Bayley. Num dos seus longos poemas, Ashbery fala de uma “espécie de paz que se conquista se não a estragares perdendo a paciência”.

“A atividade é levada a cabo por efeito do olhar, por meio de gestos,/ do diz que disse”, lê-se noutro poema. E o crítico sublinha como os leitores de Ashbery se sentem incluídos nos seus segredos, ao passo que aqueles que não acedem a estes poemas, reagem por vezes com o tipo de amargura de quem se sente deixado de fora, desprezado. O certo é que nem a crítica foi sempre unânime na receção às quase três dezenas de coleções de poemas dele, e o poeta inglês James Fenton disse que, às vezes, ao ler os poemas de Ashbery dava por si “quase levado às lágrimas devido ao aborrecimento que estes causavam”. E, por muito que seja sempre fácil reconhecer-lhe o talento, o domínio impecável da língua, o enredo prenhe de subtilezas, Fenton teve apenas a coragem de apontar os excessos próprios de uma opção estética que, sendo arriscada, não poucas vezes resvalava numa tagarelice entorpecedora. De resto, o próprio poeta reconheceu muitas vezes o enfado com que os leitores já recebiam novos poemas seus, e brincava com isso, como acontece neste verso: “Perdoem-nos este ponto de frivolidade dado no tecido da eternidade”.

Por outro lado, era desta audácia de uma poesia sempre disposta a trocar o ar pesado e enfático por uma dobra extemporânea, algo mais espontâneo, o tipo de observação humorada e inteligente mas fugaz, esses golpes do ânimo indo e voltando numa conversa a dois ou três, entre momentâneos e efusivos companheiros de alguma estrada ou rua, é dessa mistura de elementos, das variações entre impressões triviais, o ritmo oral e súbitos rasgos de erudição que se alcança uma dimensão mais complexa e dinâmica do próprio pensamento. Stephen Koch talvez tenha ido mais longe que nenhum outro crítico na descrição do tom desta poesia, ao descrevê-la como “um sussurro, simultaneamente incompreensível e inteligente, com uma estranha pulsação que varia entre picos de acentuada clareza e momentos de secura, marcados pela obscuridade e languidez”.

Nascido em Rochester, no estado de Nova Iorque, em 1927, na entrevista que deu à “Paris Review”, Ashbery recordou a sua infância, lembrando-se de si mesmo como um desses putos reservados, que se meteu com os livros na falta de amigos. Fala ainda do irmão mais novo, que morreu com apenas nove anos, de leucemia, tinha ele 12, o que lhe despertou um ineludível sentido de culpa. Não era só por os  dois se darem mal, andavam sempre à bulha, mas Ashbery sentiu que o deixou ir-se com a pior impressão do irmão mais velho, que passou a vida a atazaná-lo. O poeta diz que não sabe bem como isso terá acabado por influenciar a sua poesia, mas sabe que foi importante e que por isso está lá. É uma poesia que faz experiências com a experiência, e além da morte do irmão, há os conflitos das primeiras interações com outros rapazes, carregadas pelo peso da atração.

Ashbery cresceu numa quinta de pomares numa pequena aldeia (Sodus, condado de Wayne), onde o pai cultivava e apanhava as maçãs. Escreveu os primeiros poemas como se desenham folhas, casas e outras coisas à mão, sem intenção de vê-las expostas no Louvre. Mas acabou por ter aulas de pintura, e ambicionou ser um pintor antes de perceber que lhe era mais fácil escrever poemas. Durante boa parte da sua vida sustentou-se como crítico de arte, tendo vivido por uma década em Paris.

Nos tempos de estudante, em Harvard, além de ter começado a aprofundar as suas leituras dos poetas modernos, travou amizade com Kenneth Koch, que seria um dos parceiros de toda a vida no que toca à aventura poética, e com uma série de outras futuras eminências no campo literário, incluindo Wilbur, Donald Hall, Robert Bly, Frank O’Hara e Robert Creeley. Pela cumplicidade que desenvolveram, mais tarde, viria a ser agrupado com O’Hara, Koch, Ted Berrigan, Joe Brainard e Ron Padgett, entre outros, na chamada Escola de Nova Iorque, uma etiqueta pela qual nunca chegou a desenvolver grande afeição, sentindo que era uma forma de ensacá-los e passar por cima dos modos tão coniventes nuns aspetos como noutros diversos de inventar saídas, lançar pedras noutras direções, alinhando novos horizontes.

Não são muitos os poetas que, como John Ashbery, tenham feito da própria morte uma mera vírgula algures na sua obra. Algo que não interrompe, antes exprime uma pausa, e logo retoma o fôlego, ultrapassando esse final, como algo natural e com o qual já contava. Os poemas tinham essa sombra atravessada, sem ver nela um grande estorvo, mas lidando com ele, negociando o crédito para seguir a pé, pela posteridade que fosse possível. Como se o poema fosse uma arte de ir falando, aturando os dias, as horas, imiscuindo-se na intimidade do porvir. O poema como algo sempre inacabado, com a distância como seu principal assunto, participando dessa engrenagem que nos diz que, se o sol se põe junto a essa vírgula, além dela outro já arregaça as mangas, nessa persistência que, por muito modesta, não deixa que nada morra inteiramente.

“É um microcosmo da vida do homem à medida que delicadamente se dissipa, as suas longas sombras matutinas tornando-se cada vez mais curtas à aproximação do meio-dia, o ponto alto do dia que poderia ser comparado àquele súbito, tremendo momento de intuição que apenas tem lugar uma vez durante toda a vida, e em seguida as formas mais plenas e curvas do princípio da tarde, quando o Sol imperceptivelmente decai no céu e as sombras começam a alongar-se até todas elas se apagarem na furtiva vinda do crepúsculo, de certo modo misericordioso porque oculta as diferenças, os defeitos assim como os sinais de beleza, que deram ao dia o seu carácter e, ao fazê-lo, fizeram com que ele se tornasse um dia mais no nosso limitado acervo de dias, lembrança de que o tempo está a passar e que estamos a envelhecer, ainda não suficientemente envelhecidos para isso fazer qualquer diferença nesta ocasião particular, mas mais velhos de qualquer modo. Neste preciso momento, o Sol está a cair para além do horizonte; há alguns instantes ainda havia luz suficiente para ler mas agora não, os caracteres impressos enxameiam a página, criam um borrão impressionista. Daqui a pouco a própria página será invisível. E no entanto não sentimos necessidade de nos levantar e acender a luz; é suficiente ficar aqui sentado, grato pela lembrança de que mais um dia chegou e se foi, e que nada fizemos quanto a isso. Que dizer das resoluções matutinas de converter todos os confusos detalhes no ar à nossa volta numa coluna de números inteligíveis? De redigir uma folha de balanço? Naturalmente que isto ficou por fazer, e talvez estejas igualmente grato pela tua preguiça, contente de que te tenha trazido a este ponto em que tens de confrontar o inexorável fim do dia tal como, de facto, teremos um dia de confrontar a morte, e pôr a nossa fé em algum poder superior que nos levará consigo para uma região de eternidade e de luz. Mesmo que tivéssemos feito as coisas que devíamos ter feito isso não teria provavelmente tido importância nenhuma pois toda a gente deixa sempre algo por fazer e isto pode ser tão ruinoso como toda uma vida de crime ou de dissipação. Sim, no fim de contas há algo a dizer a favor destes dias indolentes, destilando cada um deles a sua gota de veneno até encher a taça; há algo a dizer a seu favor porque não há maneira de os eludir.” (De “Auto-Retrato num Espelho Convexo e outros poemas”, Relógio D’Água).