7 de setembro de 1963. A súbita depressão do homem sanduíche que se vestia de menina

Cary Grant foi um homem entre mulheres. Elas caíam-lhe positivamente nos braços. E, ainda assim, a imprensa mundial trazia a público a sua solidão e a sua tristeza. Que tinha tido início na infância…

Há, em Tintim e os Pícaros, do inimitável Hergé, uma cena de humor extraordinária. O capitão Haddock perde a memória. Confuso, pergunta ao seu companheiro de aventuras: “Afinal como é que eu me chamo?” Responde Tintim: “Haddock”. Comentário do próprio: “Ridículo!” E prossegue: “Qual é o meu nome próprio?” Paciente, o amigo avança no diálogo: “Archibald…” Conclui Haddock: “Grotesco!”

Não sei se Ben Schulberg, produtor da Paramount nos anos 20 e 30 terá considerado que Archibald era um nome grotesco. Pelo sim pelo não, tratou de dizer ao jovem aspirante a ator, Archibald Alexander Leach, que o melhor era trabalhar sob o pseudónimo de Cary Grant. Ficou Cary Grant.

Em 1967, Archibald viveu um dos momentos mais sombrios da sua vida.

A imprensa internacional revelou que se encontrava numa profunda depressão, isto a despeito de, na altura, já ter sido protagonista de dezenas de filmes, entre os quais os lendários “Gunga Din”, “Ladrão de Casaca” e “Intriga Internacional”, por exemplo, e ser uma espécie de imã que atraía toda a espécie de mulheres sem precisar de qualquer esforço adicional para as conduzir obedientemente para a alcova.

Não faltaram motivos para que, de repente, a infância e a adolescência do bom Archibald se tornasse pasto para a curiosidade universal, com aquele toque de morbidez que sempre acompanha a vida das figuras públicas. E não faltou quem escarafunchasse o suficiente o seu passado para descobrir que a mãe, descontente por ter um rapaz, o vestia de menina desde a mais tenra idade.

Vieram depois os estudos psicológicos em barda, mais sérios ou menos sérios, dependente de quem os publicava ou assinava. E, como não poderia deixar de ser, esse travestismo maternal serviu para justificar a sua futura homossexualidade, algo que nunca saiu de um limbo, compreensível se pensarmos que estamos a falar de um dos maiores galãs da história de Hollywood.

Transcrevo, agora, um naco de prosa desse dia 7 de setembro de 1967 que dá que matutar: “Grace Kelly nunca negou ter tido por Cary Grant uma intensa simpatia e continua a contá-lo, ainda, entre o número dos seus amigos. Ingrid Bergmand recorda com saudade os dias de filmagem de “Notorious” que fica para a história do cinema por um longo e extenuado beijo trocado entre ambos. Katherine Hepburn, Grace Moore, Suzy Oarker, Deborah Kerr, Jayne Mansfield, Marilyn Monroe e Kim Novak, para não alongar ainda mais a lista, manifestaram-lhe o seu afeto. E, ainda agora, a novíssima geração de Hollywood se interessa de maneira ostensiva por este ator que já passou a casa dos cinquenta”.

Antes de prosseguir na retoma das palavras de antanho, acrescento. Depois dessa célebre depressão, Cary Grant não voltaria a entrar em filmes, exceção feita a uma presença num documentário sobre Elvis Presley.

Significativo, não é?

Voltemos à vaca fria: “As suas três esposas afirmam unanimemente que nunca o esqueceram e que mantêm ainda relações de estima e de amizade. Milhares de mulheres em todo o mundo, apesar de saberem bem que ele não é um jovem, suspiram quando o veem no ecrã: rosto irónico, olhos sublinhados por uma rede de rugas, andar bamboleado mas elegante. Todavia, apesar deste plebiscito de simpatia geral, apesar de uma longa carreira feita de sucessos, Cary Grant esconde um segredo de profunda melancolia, de íntima infelicidade. É um dos grandes do cinema internacional: tem uma conta no banco de vários milhões de dólares, casas nas principais cidades do mundo, uma dezena de automóveis, alfaiates exclusivos, quer dizer, um trem de vida como um nababo oriental. Mas, por detrás daquele sorriso de homem simples e afortunado que há mais de trinta anos dá a volta ao mundo, Cary Grant esconde qualquer coisa, uma insatisfação, uma infelicidade, uma melancolia que o perseguem e que ele procura esconder, aparentando otimismo, serenidade e alegria de viver”.

Palavras dúbias.

Na imprensa portuguesa de 1967, não se ia além deste arrazoado de palavras dúbias que nos deixava perante uma realidade que, afinal, não correspondia aos factos.

Archiblad foi afastado dos pais muito cedo e, com isso, dos vestidinhos femininos cerzidos pela mãe. Aos 9 anos já estava a bordo do Lusitânia a caminho de Nova Iorque e de uma carreira no mundo do espetáculo. Voltou à sua Bristol natal, em Inglaterra, no ano seguinte. A mãe fora, entretanto, internada num hospital psiquiátrico e o futuro Cary Grant fez-se à vida. Serviu como funcionário em salas de cinema, de lanterna na mão, vendeu gravatas e participou em campanhas publicitárias disfarçado de homem sanduíche. Nada de muito extraordinário.

Em 1933 já tinha uma dúzia de películas na sua filmografia e Hollywood apaixonara-se por ele. Não apenas a Hollywood das mulheres que lhe caíam nos braços desmaiadas de emoção. O ator Randolph Scott foi, segundo tudo indica, a sua grande paixão, tendo ambos chegado a viver na mesma casa, o que incomodou os produtores dessa época ainda muito pouco disponíveis para aceitar tranquilamente a homossexualidade. Casa-se. Quatro vezes: com Virginia Cherrill, Barbara Hutton, Betsy Drake e Barbara Harris. Apaixonou-se por Sophia Loren que não esteve disponível para ele.

Morreu no palco, representando-se a si próprio, no Teatro Adler, em Davenport, de uma súbita hemorragia cerebral.

Levou para o túmulo o segredo da sua tristeza, embora se tenha convencido que seria capaz de a curar à custa de LSD. Resumiu a sua vida numa frase: “Sinto-me vazio…”.