Miró em Lisboa. O embate com um génio selvagem

Depois do Porto, a coleção Miró que tanta polémica gerou é exposta na íntegra no Palácio Nacional da Ajuda, mas o grande público deve preparar-se para um duro embate com vários exemplos do génio selvagem do catalão que, segundo o comissário, «é um dos artistas que se podem amar sem saber nada sobre eles».

Miró em Lisboa. O embate com um génio selvagem

Joan Miró era um bárbaro discreto, uma figura singularíssima, ao mesmo tempo tímido ao ponto da exasperação, e, talvez por isso mesmo, um artista insaciável e que, depois de pelos dez anos se ter descoberto nas aulas de desenho, nunca mais desmontou o cavalo que lhe deu a sua primeira epifania. «Essa classe era como uma cerimónia religiosa para mim», diria mais tarde. «Eu lavava as mãos com todo o cuidado antes de tocar nos papéis ou nos lápis. Os instrumentos do trabalho eram objectos sagrados».

Foi preciso uma autêntica rebelião no seio familiar, que o levou ao ponto de um esgotamento nervoso, e depois de quase o perderem para a febre tifóide, para que os pais esquecessem os planos que tinham para ele enquanto homem de negócios. O tão pacato miúdo estava estragado para as coisas práticas. Deixaram-no instalar-se numa quinta em Montroig, nos arredores de Barcelona, e foi ali que, a par da liberdade para criar, a paixão pela Catalunha despontou nele. Toda a vida a arte foi uma boca. Era preciso levar-lhe as coisas para tirar-lhes um gosto, e quando as aparências se meterem no seu caminho, foi tão longe que chegou a pintar de olhos vendados. Entre os artistas a que se juntou quando, em 1919, foi para Paris, muitos se prodigalizaram nas grandes manifestações de princípios, mas ele exigia das coisas uma outra vida, trabalhava-as, apurava o seu método buscando uma relação intrínseca com os próprios materiais em que pegava, e era como a larva que nesse casulo buscava uma metamorfose que rasgasse os limites da imaginação. «Forma os teus olhos fechando-os», lê-se em Imaculada Concepção, obra a quatro mãos, assinada por Breton e Éluard. Nesta obra encontramos um molho de chaves para o trabalho de Miró, e que se tornam relevantes agora que Portugal chamou a si o desafio de descobrir e defender um dos artistas mais empenhados na expansão dos horizontes da arte contemporânea. «Daquilo que tem a cabeça sobre os ombros, abstém-te». Mais uma: «Deixa a madrugada aumentar a ferrugem dos teus sonhos». E outra: «Fala consoante a loucura que te seduziu». E para terminar: «Nunca esperes por ti».

Está em Lisboa, aguardando a visita do público até dia 8 de janeiro, e exposta na íntegra no Palácio Nacional da Ajuda, a coleção que, há uns anos, esteve no centro de uma das mais instigantes polémicas envolvendo o mundo da arte. As 85 obras de Miró que ficaram na posse do Estado português após a nacionalização do BPN tinham sido adquiridas pelos banqueiros a um empresário japonês, que por sua vez o adquirira à família de um dos filhos de Matisse, Pierre – fazia parte dos fundos da sua galeria em Nova Iorque. Mas se não se pode dizer que aqueles senhores tenham perdido a cabeça pelos Miró, no que seria sempre um álibi fantasista se esse tipo de preferências os tivesse levado a falir o banco, a jogada expõe na verdade apenas aquilo em que a arte se tornou: mais um meio de circulação do dinheiro. Isto pela forma como a atividade dos museus tem emulado a das instituições financeiras, pois, tal como os bancos, especulam sobre os valores das suas colecções, fazendo-as correr o mundo produzindo uma virtualização simbólica em que a arte propriamente desaparece para que surja um fantasma. Às tantas já não estamos perante o enigma do sorriso de Mona Lisa, mas todo o fascínio fica para a sua assombração.

A hierarquia de valores

Se no início de 2014, e na ânsia de aplacar a fúria dos deuses (credores), o Governo de Passos Coelho alienava as pratas da casa, sacrificava cabritos e até Isaque sem qualquer remorso, foi preciso que uma vaga de fundo se organizasse, com a própria oposição a vir com um inusitado amor pela arte traçar a linha vermelha em Miró. O país que, no que toca à cultura tem sido só até ao joelho, subitamente estava ultrajado porque, na sucessão de desgraças, com o castelo de cartas a vir por ali abaixo, os Mirós foram a gota de água. 

Portugal até foi notícia lá fora. Aqui estava um país que, depois de obrigado a colocar-se de joelhos, a pedir clemência aos credores, de súbito se insurgia e em nome do quê? O mais difícil é descrever as obras de Miró. É preciso ir vê-las. De resto, talvez só uma boa polémica justifique o número recorde de visitantes que Serralves recebeu aquando da exposição das obras, com mais de 240 mil entradas.

Foi por esta altura, no ano passado, que António Costa se deslocou ao Porto e, ao anunciar que a coleção seria confiada àquela cidade, proclamou heroicamente: «Nesta época em que tantas vezes temos dúvidas sobre a hierarquia dos valores, a história recente desta coleção ajuda a pô-los na sua adequada hierarquia». 

Lembre-se que as 85 obras do artista catalão, que abrangem um período de seis décadas do seu trabalho, de 1924 a 1981, tinham sido avaliadas no seu conjunto, pela Christie’s de Londres, em 35,9 milhões de euros. Não é preciso ser nenhum entendido nas flutuações de humor do mercado de arte para saber que no momento em que é posta à venda uma grande quantidade de obras de um grande artista, o seu valor terá necessariamente de descer. Portanto, o negócio era outro desses que mexem com o património do Estado e que trazem aquele travo a desespero e estupidez.

Alargar a perspectiva sobre Miró

Quanto à exposição que desceu do Porto a Lisboa – Joan Miró: Materialidade e Metamorfose -, a principal diferença prende-se com a área ocupada pelo projecto expositivo. Se em Serralves os cerca de 400 m2 davam menos espaço às obras para respirar e obrigaram a que sete ficassem no armazém, em Lisboa a galeria D. Luís I do Palácio Nacional da Ajuda, com cerca de 700m2 e os seus tetos altos, não só permitiu mostrar a coleção na íntegra como ofereceu ao comissário, Robert Lubar Messeri, a possibilidade de explorar outros modos de dar a ver as obras e de combiná-las entre si.

Confiante de que Miró «é um daqueles artistas que se podem amar sem saber nada sobre eles», e que a colecção por si mesma funciona «como uma aula de História de Arte, um curso sobre um dos três homens que, no começo do século XX, transformaram o vocabulário da arte moderna [os outros dois são Picasso e Matisse]», Messeri prescindiu de qualquer acompanhamento teórico e de uma perspetiva didática a estas obras.

Se defensável, esta é a opção mais fácil e mais arriscada, e, no entanto, significa também que se perde a oportunidade de garantir que se cria um vínculo entre esta inestimável coleção e o público. E isto desde logo porque, como o próprio comissário reconhece, se «a ideia que a maioria das pessoas têm do Miró é a do artista poético, lírico, e isso está certo, porque não deixa de fazer parte do seu percurso, aqui temos um artista muito mais agressivo, mais selvagem, mais experimental».

Ao SOL, Messeri reconheceu que a mostra que agora chega a Lisboa «obriga-nos a alargar a nossa perspetiva sobre este pintor». Podemos sempre contar com o optimismo negligente e com os arautos do «espectador emancipado», da ideia de que não pode haver uma atitude paternalista na forma como a cultura é apresentada aos públicos, e contudo é curioso que um artista a que o The New York Times chamou um «assassino em série das convenções artísticas», e que aparece aqui com alguns dos exemplos mais radicais da forma como virou tudo de pernas para o ar, não esteja sujeito a um trabalho de generosa mediação.

Um dos maiores especialistas mundiais de Miró, Messeri defende que estas 85 obras não constituem um simples acervo do artista, que apesar de não terem sido reunidas como uma colecção, funcionam como tal uma vez que dão «uma maravilhosa visão global do trabalho de Miró, porque abarcam 60 anos de actividade e porque os trabalhos são todos muito, muito bonitos».

Na apresentação aos jornalistas, o comissário guiou o grupo pelo labirinto e foi dando apontamentos sobre os processos de criação de Miró, sem nunca revelar mais do que uma admiração há muito sedimentada. Embora tenha, por várias vezes, apontado para esta e aquela obra, ameaçando uma nota de entusiasmo, ao dizer que se tratava de peças excecionais, emblemáticas ou geniais, quem não soubesse já o porquê ficaria na mesma. Portanto, resta ao público ir fazer o teste da sua sensibilidade.

Com uma abordagem que se socorre da forma como, nos sucessivos ciclos da sua experimentação, Miró procurou nos materiais e nos instrumentos algo que lhe «ditasse» a técnica que deveria aprofundar de modo a dar-lhes vida, o comissário sublinhou como esta exposição é única, pois se trata da primeira vez em que a materialidade é o fio condutor desta abertura sobre a obra do artista.

Não obstante assumir que, enquanto historiador de arte social, lhe interessa a implicação da arte com os movimentos sociais, Messeri disse que não podia comentar a questão política: «Esse é um aspeto que não me interessa nada». Sobre a polémica que a coleção gerou, limitou-se a referir que estava contente por esta ficar em Portugal, «porque oferece muitas possibilidades para uma afirmação do país dentro do mundo da cultura. Ainda por cima, não é um artista português, mas um artista de dimensão internacional».

Da parte dos responsáveis quer de Serralves, Palácio Nacional da Ajuda e mesmo da Direcção-Geral do Património Cultural, não houve, na apresentação aos jornalistas, mais do que as palavras da praxe, o solene e abotoado cerimonial, com a troca de galhardetes e números, destacando o sucesso da exposição no Porto. A este respeito, é curioso lembrar o testemunho de outro dos maiores pintores do século XX, o também catalão Antoni Tàpies, sobre Miró: «Ainda há quem acredite que é poderoso o cheio de títulos e medalhas, o académico ou o catedrático orgulhoso que escreve a História. Miró gozou com todos os ‘oficialmente’ bem pensantes, porque ninguém demonstrou como ele o fracasso e a inutilidade de todas as falsas hierarquias que perdem o tempo a condecorarem-se, e depois têm de correr precipitadamente atrás dos passos dos que realmente fazem o caminho. Porque uma coisa são os grandes nomes e as grandes leis que aparecem sempre nos jornais e outra a força da vida que, por mais que se julgue dominada, acaba sempre por vencer».