Lisboa: procuram-se médicos de família

Há 687 mil pessoas sem médico de família na região, um quinto da população. Em 2016, abriram 225 vagas para jovens especialistas e 86 ficaram por preencher. Será diferente este ano? Se todas os lugares fossem ocupados, bastavam dois anos para resolver o problema. 

A t-shirt de Liliana parece resumir o estado de espírito. «Just don’t quit your dreams», lê-se. Estamos no 7.º piso do centro de saúde da Alameda, um dos locais que a jovem especialista em medicina geral e familiar, futura médica de família no Serviço Nacional de Saúde, quis conhecer depois de um périplo por várias unidades nas últimas semanas.

Aos 30 anos, o verão foi de reflexão e alguma ansiedade, confessa Liliana Costa. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de tomar uma decisão: escolher a que unidade candidatar-se, o que não é tarefa fácil para quem optou pela medicina familiar por querer ter um projeto, uma equipa e acompanhar as famílias a seu cargo ao longo do tempo, nas diferentes fases da vida. «É uma decisão a longo prazo», resume.

Natural da Figueira da Foz, Liliana fez a formação como especialista em Leiria. O namorado vive no Porto. A região de Lisboa e Vale do Tejo, a par do Algarve, é onde fazem falta mais médicos. Mas mais perto da capital talvez fosse mais fácil haver emprego para ele, se pensarem nisso. São estas as variáveis na cabeça da médica, que decidiu aproveitar os últimos dias para conhecer a capital – o concurso estará prestes a abrir. No Norte, fê-lo por sua conta: tirou três dias e fez 800 quilómetros de um lado para o outro para ir espreitar as condições de alguns centros de saúde. Em Lisboa, aproveitou uma iniciativa lançada este ano pela Administração Regional de Saúde: abrir a porta aos recém-especialistas para visitarem as instalações com antecedência e falar com os responsáveis. Conhecer o ambiente, os projetos, as necessidades e até ajudar a desmontar algumas imagens mais negativas que possam existir.

«Estava à espera de mais confusão»

Antes da Alameda, Liliana visitou oficialmente Cascais, mas como teve tempo livre foi espreitar outras unidades na zona da Grande Lisboa. Foca-se em alguns pormenores como o ambiente na sala de espera, que antecipa um pouco a pressão a que estão sujeitas as equipas, explica. E depois há a informação que está disponível aos doentes, por exemplo nos cartazes afixados, que revelam a organização dos serviços. Para a conversa com os diretores, ficam outras perguntas. Se há psicólogos, dentistas, forma de fazer colheitas para análises sem ser preciso os doentes irem ao hospital ou a clínicas particulares, como são os horários, como funcionam os fins de semana.

Encontrou claras diferenças de uns lugares para outros, mas sendo conhecida a falta de médicos na região, até acabou por ficar um pouco mais otimista. «Estava à espera de filas e ver pessoas a protestar, estava à espera de mais confusão», diz, o que pode ainda assim ter sido sorte.

No centro da saúde da Alameda, manhã de uma terça-feira, o ambiente também é calmo. Desta vez, a interlocutora é Vera Almeida, diretora executiva do Agrupamento de Centros de Saúde Lisboa Central, que agrega 17 unidades espalhadas por 13 freguesias de Lisboa, da Estrela ao Parque das Nações. Também ela chegou há um ano, mas vestiu a camisola do ACES no coração de uma Lisboa por um lado envelhecida e, por outro, com cada vez mais turistas e migrantes, o que aumenta a pressão sobre os serviços.

Têm estado a aumentar os utentes que recorrem aos centros de saúde, explica a responsável, e há 47 mil pessoas sem médico de família atribuído. Já foram mais, mas ainda representam 16,7% dos utentes utilizadores inscritos. Entre as vantagens que apresenta a Liliana, Vera refere o facto de terem sido dos primeiros a ter uma unidade com dentistas ou uma parceria com o Hospital de S. José para as análises. E haver tantas culturas juntas aumenta o desafio no campo da promoção de saúde pública, admite. Na USF da Baixa, são mais de 20 nacionalidades. Já ali, na Alameda, porque não falar da vista para a cidade, sorri. Em Cascais, brinca Liliana, aconteceu o mesmo.

No Norte já só 2,6% dos doentes não têm médico

O empenho dos diretores nas visitas percebe-se: não tem sido fácil debelar a falta de médicos. Luís Pisco, vice-presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, explica que foram as dificuldades em atrair os internos que se formam na região Norte e Centro, onde há menos lacunas de médicos de família, que motivaram a ideia de abrir as portas dos centros de saúde aos jovens especialistas. E há outro problema: como são colocados aos 30 anos, quando muitos já têm a vida pessoal organizada na zona onde fizeram o internato, nem todos ficam. Há concursos de mobilidade, ofertas no privado.

Segundo os dados disponíveis no portal do SNS, há neste momento 940 mil utentes sem médico de família e seriam necessários 536 clínicos para dar resposta a todos os portugueses. A diferença regional é gritante: na região de Lisboa são 687 mil pessoas sem médico, cerca de 20% do total. No Norte, já só há 94 mil utentes à espera, uma fatia de 2,6%. Em termos de carências, a segunda região com o pior cenário é o Algarve, onde falta médico a 90 mil pessoas – fatia maior do que em Lisboa (26%), mas ainda assim com menos doentes por abranger. Na região de Lisboa, o Ministério da Saúde estima serem necessários 389 médicos e no Algarve 52.

As razões para a desigualdade são históricas, diz Luís Pisco. «O Norte teve fundos comunitários até mais tarde, tem uma rede de centros de saúde melhores. Isto levou a que fosse havendo mais internos: para uma unidade receber médicos em formação tem de ter especialistas em número suficiente mas também instalações reconhecidas pela Ordem».

Para inverter a tendência, além de ter passado a haver uma distribuição das vagas em função das necessidades, a região é a que prevê mais obras de remodelação ou mesmo novos edifícios para centros de saúde, cerca de 50 projetos dos 80 planeados pela tutela em parceria com as autarquias até ao fim da legislatura.

A mensagem, porém, ainda não estará a ter força suficiente. No ano passado, nos dois concursos para colocação de especialistas, abriram 225 vagas em Lisboa e 86 ficaram por preencher, ao que se soma os casos de alguns médicos que acabam por sair, reconhece Luís Pisco. Este ano, das 290 vagas abertas pela tutela, 218 são para a região – 75% do total. «Se ocupássemos todos os lugares, resolvia mais de metade das nossas necessidades em termos de médicos. Com outro ano como este ficaríamos com o nosso problema resolvido, já descontando os médicos que se vão reformar», diz o responsável. «Médicos existem, é preciso é que eles queiram trabalhar na região de Lisboa.»

Neste concurso para recém-especialistas vão avançar os novos incentivos financeiros para colocar médicos nas unidades mais deficitárias, o que abrange alguns centros de saúde da região de Lisboa com situações mais problemáticas. É o caso de Sintra: faltam 28 médicos para 90 mil utentes, um terço do total. Os centros de saúde deste ACES são algumas das unidades onde os médicos terão direito a um aumento de vencimento de 40% e mais férias.

Será suficiente? Pisco admite que é uma ajuda, a avaliar em função do seu sucesso. Quanto à hipótese que em tempos esteve em cima da mesa de poder vir a ser obrigatório os médicos que acabam a formação trabalharem pelo menos alguns anos nos serviços do SNS onde fazem mais falta, já que se tornam especialistas no Estado, o responsável tem dúvidas sobre este tipo de imposições. Mas reconhece que, atualmente, há esse paradoxo de os impostos de todos poderem pagar a formação de médicos que podem emigrar ou ir trabalhar para o privado.

«O que mais custa é não ter noção do ‘até quando’»

Liliana não se vê a trabalhar no setor particular: acredita que no SNS o objetivo é haver uma aposta num acompanhamento personalizado e na prevenção e não apenas na vertente curativa.

Nos últimos meses, depois de ter terminado a especialidade em abril, ficou a trabalhar noutra unidade de saúde em Leiria, onde fazia falta. Também podia concorrer para lá, mas isso já descartou: quer conhecer uma nova realidade e abraçar um desafio do zero. Mas as últimas semanas não têm sido fáceis de gerir. No ano passado os novos médicos já estavam colocados em agosto. Este ano, só no final do mês passado houve luz verde das Finanças para abrir o concurso. Os mapas de vagas saíram esta semana mas o concurso ainda não abriu. «O que mais custa é não ter noção do ‘até quando’. Não saber se ainda vou ver os resultados dos exames que tenho estado a pedir»

E depois há os doentes, alguns sem médicos há anos. «Não compreendem por que é que vão ficar sem médica oura vez». Numa altura em que há queixas no setor e relatos de médicos sobrecarregados com listas de doentes que os sindicatos pretendem reduzir, sabe que há dificuldades mas acredita que as coisas podem melhorar. E mesmo que a alguns a sua visão possa parecer um pouco romântica, não se deixa demover. «Vou-me esforçar para lhes mostrar que estão errados», sorri.