Cavaco desengravatado…

Cavaco protagonizou em Castelo de Vide a Oposição. Explorou as fraquezas e as contradições das esquerdas

Cavaco tem o condão de ser polémico, escreva o que escrever, ou diga o que disser. Foi o que aconteceu em Castelo de Vide, na chamada universidade de verão do PSD, concebida para o ensinamento político da juventude do partido.
Ao trocar o aconchego do seu retiro algarvio por uma deslocação matutina ao alto Alentejo, Cavaco teria forçosamente de levar no bolso o fator surpresa, para não frustrar quem o convidou a quebrar o ‘jejum’ público a que se tinha remetido (se excetuarmos o livro de memórias). E o ex-Presidente não desiludiu. 

Para desespero dos novos censores, acantonados nas redes sociais – e que emergem regularmente nos media graças à conivência ingénua de muitos jornalistas –, Cavaco foi direto ao assunto, e, por vezes, de uma forma inesperadamente crua. Claro que os zelotas das causas ‘alternativas’ não gostaram, juntamente com os comentadores avençados, e reagiram com o destempero do costume. Nada que surpreenda.
Afinal, que ‘pecados’ cometeu Cavaco na sua lição desengravatada, ao dirigir-se aos aspirantes a políticos no encontro social democrata?

É verdade que alvejou a ‘geringonça’, que «finge que pia» e os partidos da coligação, que defendem a saída do euro, o que só poderia acontecer se Portugal «enlouquecesse» a caminho de «outra galáxia, talvez para a galáxia onde vive a Venezuela». E quem poderá negar-lhe razão, descontando os utópicos radicais do Bloco e os comunistas nostálgicos da revolução bolchevique de 1917?
Cavaco teve a virtude de ser explícito sobre o que pensa – e muita gente com ele – após dois anos de governo formado à revelia da primeira escolha do eleitorado, e quando se renova o fogo cerrado contra Pedro Passos Coelho, o grande obstáculo às aspirações hegemónicas do PS e dos seus parceiros. 

Mas acaso o antigo Presidente se excedeu, a ponto de chocar tanto as almas que circulam na net e em não poucas tribunas de opinião? Aconselha-se vivamente o visionamento integral da sua intervenção no Youtube.
É certo que acusou o grego Tsipras de «bazófias» – uma evidência – e não poupou o desatino de Hollande. Falou de Macron com simpatia e concordou com a sua tese de que «a palavra presidencial deve ser escassa». Foi cáustico com os «devaneios revolucionários» e a «verborreia frenética» de alguns políticos europeus. Confessou-se, simultaneamente, adversário e vítima das fake news. E, num apelo final enigmático, incentivou os jovens presentes a «combaterem o regresso da censura». 

Como diria Marques Mendes, do alto do seu espaço da SIC, «teve carradas de razão». 
É verdade que Cavaco, ainda Presidente, poderia ter mudado os destinos da História, se não tivesse contemporizado com as megalomanias de Sócrates, então primeiro ministro, e não tivesse empossado um Governo formalmente legal, mas ilegítimo à luz da derrota eleitoral de António Costa e do PS nas últimas Legislativas..

Dada a impossibilidade constitucional de dissolver o Parlamento e não querendo nomear um Governo de gestão, Cavaco acreditou, talvez, que uma coligação de contrários não aguentaria muito, poupando o País à instabilidade prometida pelas esquerdas. 
A realidade é que os parceiros da ‘geringonça’ se conluiaram para forjar a ‘paz social’, enquanto movimentam os peões nos estúdios de TV e tomam de assalto a administração pública e as posições-chave, colocando as suas pedras. 

Sibilino, António Costa aproveitou um pretexto qualquer, durante a visita a uma feira agrícola, para insinuar ser «natural» que Cavaco «tenha agora algumas saudades do palco».
Costa sabe do que fala. Saído do governo de Sócrates, que levou o país à beira da falência, refugiou-se no palco televisivo da Quadratura do Círculo, em acumulação com o Município, distinguindo-se por nunca ter feito a menor crítica aos desvarios do ex-primeiro ministro, protegendo-o até onde pode.

Marcelo Rebelo de Sousa também não resistiu, algures no norte, a reprovar implicitamente a liberalidade de Cavaco, «porque se os sucessivos Presidentes da República não têm respeito naquilo que dizem uns dos outros, em termos de forma e de conteúdo, acabam por não se fazer respeitar pelo povo». 
Esqueceu, talvez, as farpas regulares que Mário Soares dirigia a Cavaco Presidente, sem que ninguém lhe fosse à mão por isso.

Cavaco protagonizou em Castelo de Vide a Oposição, o que é intolerável para a oligarquia, que quer tapar a todo o custo o seu fracasso, em Pedrógão ou em Tancos, com ‘histórias da carochinha’ para entreter incautos. Fê-lo de uma forma certeira e que toda a gente entendeu. Explorou as fraquezas e as contradições das esquerdas.
A medida do incómodo ficou patente nos fiéis da ‘coligação’, que já rezam novenas apoquentadas perante este súbito aliado de Passos Coelho…