Entre Pagão e a vaga geometria

Em 1969, Chico Buarque estava exilado em Itália.Veio a Lisboa e foi ver Eusébio e Coluna. E trocou umas bolas com eles…

Ah! O Chico. Poucos artistas gostarão tanto de futebol como o Chico. Chico Buarque de Holanda, por extenso. Ele anda aí pelo mundo, tocando e batendo uma bolinha com a sua equipa doPolitheama. Jogámos aqui, por Lisboa, várias vezes. Nunca na mesma equipa: ele tem lá os moços dele, precisa de quando em vez de um emprestado para completar o onze, nada mais. 

«Aqui na terra ‘tão jogando futebol/Tem muito samba, muito choro e rock’n’ roll/Uns dias chove, noutros dias bate sol/Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta», canta oChico. Também cantou: «Quando teu coração suplicar/Ou quando teu capricho exigir/Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir». E, então, a coisa ficou preta para ele. Foi de machista para cima. Não sei se alguém reclamou algo idêntico quando ele compôs: «As jovens viúvas marcadas/E as gestantes abandonadas/Não fazem cenas/Vestem-se de negro, se encolhem/Se conformam e se recolhem/Às suas novenas, serenas». 

Também não sei se a mulher com filhos largada pelo homem que seguiu a amante de joelhos se conformou e se encolheu. É questão de lhe perguntarem. Isto é, se verdadeiramente alguém a conhece ou se ela existe. Existe certamente. Existem tantas!

O Chico nunca foi de se encolher. Gosta da sua pelada e disputámos algumas, no velho Estádio da Luz, na Tapadinha, no campo do extraordinário Fofó, o Futebol Benfica. Ele, devagarinho, um mau perder tremendo, exigindo o passe para os golos fáceis, reclamando faltas umas atrás das outras. 

Há um documentário chamado Chico – Artista Brasileiro. Retrato feito do compositor, a importância que o futebol tem na sua vida e a reverência e humor com que é tratado. A certa altura, oChico comenta uma foto de 2007, quando foi convidado por Luís Figo para jogar, no Estádio de Alvalade, um desafio entre velhas estrelas: «Na hora do cumprimento o Zidane me olhava com uma cara de ‘quem é este senhor?, o que ele está fazendo aqui?’».

Recordo-me bem. Estava lá, trabalhando para a Fundação LuísFigo. Mas ele não era o único artista por entre os artistas do futebol. Havia oEros Ramazzotti, o Rui Veloso, o João Gil. Noite fantástica, estádio bem composto. Mas o Chico reclamou pouco. Preferiu calar-se e avançar na vaga geometria…

A vida de Chico nunca funcionou sem futebol. Em maio de 1969 estava igualmente em Lisboa. Foi aoEstádio da Luz e tirou fotos com Eusébio e Coluna. Vestiu a camisola doBenfica e trocou umas bolas com eles. Ainda não tinha trauteado «Se eu fosse o Rei/Para tirar efeito igual/Ao jogador/Qual/Compositor/Para aplicar uma firula exata/Que pintor…», dedicado a Pagão, seu ídolo de menino.
Pagão:Paulo César de Araújo, avançado-centro dosantos e doSão Paulo. «Ele era demais!», babava oChico.

«Tinha uma leveza admirável. Pegava a bola no ar e, com a parte de fora do pé, chapelava o adversário».
No seu Politheama, Chico Buarque usa a camisola número 9: «A de Pagão, claro!» Depois fica lá na frente, meio preguiçoso, esperando o passe arredondado para o golo fácil, fácil.

O ídolo pode ter sido Pagão, mas Chico é do Fluminense. E anti-Flamengo. Quando estava exilado em Itália, vivendo em Roma, nesse ano em que veio verEusébio e Coluna, a Lisboa, escreveu um texto que dizia: «Ser antiflamenguista é ostentar no meio da cara um diploma de ressentido. É detestar Mangueira, o carnaval e tudo o que cheire a popular e unânime. O neném desmamado, o menino asmático e o homem traído, esses terão sempre o direito de gritar contra o Flamengo. Por isso mesmo é muito fácil ser rubro-negro. Fácil de mais. É como ser a favor do sol no meio do deserto, ou comemorar o Dia da Árvore no coração da Amazónia. (…) Mas torcer pelo Fluminense, modéstia à parte, requer outros talentos. Precisa saber dançar sem batucada. O tricolor chora e ri sem ninguém por perto. Ele merece um campeonato, ele merece».

Chico Buarque de Holanda tinha 25 anos. Vivia longe de casa sem poder voltar.  «Eram cinco horas da madrugada e ninguém se manifestava nas redondezas do Vaticano. Ignoravam o campeão carioca num silêncio canónico, donde pude constatar que, naquele exato momento, em assuntos de futebol eu era o homem mais feliz de Roma».
Ainda não tinha fundado o Politheama, o clube-que-nunca-perde. Uma vez, numa digressão ao Ceará, a equipa deChico foi goleada por 0-10. À noite, no concerto, ele deu os parabéns aos adversários, sentados na plateia: «Jogaram muito bem e foi muito difícil derrotar-vos…».
Para lá da imaginação ele joga a tabelinha infinita: «Para Mané para Didi para Mané Mané para Didi para Mané para Didi para Pagão para Pelé e Canhoteiro…».
afonso.melo@newsplex.pt