O segredo que gógol levou para o túmulo

Há leituras que vamos adiando mês após mês, ano após ano, não por falta de interesse mas precisamente porque não queremos esgotar esse prazer – por isso as guardamos e vamos gozando por antecipação. 

No meu caso, foi um pouco isso que se passou com Almas Mortas. Sabendo que se tratava da obra-prima de Nikolai Gógol – de quem conhecia O Nariz, O Capote, Avenida Névski e Diário de um Louco (nas edições primorosas da coleção Gato Maltês) – tinha uma curiosidade imensa de o ler. Mas fui protelando a sua descoberta. Até que surgiu o momento certo.

O título Almas Mortas faz pensar em cemitérios e pode levar a que o julguemos um livro triste, cinzento, deprimente. Nada mais errado. Trata-se na verdade de uma narrativa cheia de leveza e de momentos hilariantes só ao alcance de um escritor e humorista de génio. Almas Mortas conta as aventuras e desventuras do roliço Tchítchikov, que nos é apresentado como alguém que «revelava um quê de imponência nas suas maneiras e assoava-se muito ruidosamente». Acrescenta o autor com maldade: «Não se sabe como fazia isso, mas o nariz dele soava como uma trombeta».

O «nosso herói», como lhe chama o narrador – embora Tchítchikov seja o oposto disso – anda de terra em terra a visitar proprietários rurais aos quais faz uma proposta estranha, para não dizer imoral: comprar as almas mortas (os servos que, apesar de terem morrido, ainda constam dos registos como se estivessem vivos). Que objetivo leva escondido na manga? Fazer-se passar por grande senhor, dono de muitas almas. E a verdade é que todos o consideram muito digno, muito bem-falante e ponderado… como não é raro serem considerados os mais rematados aldrabões.

No seu caminho, Tchítchikov cruza-se com diferentes personagens. Refiro apenas duas das mais memoráveis: Nozdriov, um espalha-brasas que o força cortesmente a ficar em sua casa só para depois se zangar com ele, insultá-lo da forma mais violenta e quase lhe bater; e Pliúchkin, o mais forreta dos homens, que acumula bens sem fim mas vive como um miserável. Um apontamento delicioso: quando o protagonista entrega ao avarento o dinheiro da compra, este agarra-o «com ambas as mãos» e leva-o «com tanto cuidado como se fosse um líquido que tivesse medo de derramar».

Ao contrário do que seria de esperar, o trajeto de vida de Tchítchikov só nos é contado quase no final do primeiro volume. Quanto ao seu destino – o seu estratagema será alguma vez denunciado? – nunca ficaremos a conhecê-lo. «Na noite de 11 para 12 de fevereiro [de 1852], às três da manhã, tendo por única testemunha um jovem criado ucraniano, [Gógol] lança ao fogo tudo o que tinha escrito da segunda parte de Almas Mortas, benze-se e volta a deitar-se», conta Filipe Guerra numa nota biográfica que acompanha a sua tradução para a Assírio & Alvim. O próprio Gógol morreria apenas dez dias depois, levando o segredo do seu personagem consigo para o túmulo.