Musas, Medusas, Desmusas

Acompanhando as conquistas das mulheres, a imagem da musa antiga sofreu uma reviravolta, muito além das formas corporais que agradam ao olhar masculino. Por vezes pouco estimulantes, ausentes, indisponíveis, desdenhosas até, as musas do nosso tempo têm querer e vida própria

Bem cotadas no mercado cultural da antiguidade clássica, as Musas, sem outra atribuição que não seja a de inspirar, formam um coletivo feminino de nove divindades, tantas quantos os dias que os seus pais, o par mitológico Zeus e Mnemósine, a deusa da Memória, permaneceram unidos. Homero, Hesíodo – o primeiro poeta conhecido da Grécia a quem as Musas se revelaram -, Píndaro, Aristófanes (cultor da musa cómica) veneraram a comitiva de Apolo. E não era para menos: sem o favor das musas o êxito era uma incógnita.

Camões, atento aos dons destas jovens de passado nebuloso, não abdicou dos seus préstimos, tendo-as submetido n’ “Os Lusíadas” a um processo de deslocalização que tinha em vista lucros evidentes. Às musas, transferidas da mítica Grécia para território nacional, confiou, aliás, o seu desalento numa série de invocações em que é clara a ação erosiva do tempo de escrita (e o cansaço do seu ofício de poeta épico), a qual culmina na famosa apóstrofe do canto X: “Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho/ Destemperada e a voz enrouquecida,/ E não do canto, mas de ver que venho/ Cantar a gente surda e endurecida» (X, 145). 

Mas entre as musas de Camões, convertidas em mero lenitivo, e a musa da geração olímpica de Homero havia um mundo a separá-las. A musa de Homero, apta a aceder a tempos, lugares e acontecimentos longínquos não presenciados pelos mortais, assegurava a verdade do canto; as musas de Camões são uma peça de adorno requerida pelo figurino da épica greco-latina. O autor d’ “Os Lusíadas”, homem de experiência múltipla, de errância desordenada mas também um “erudito de gabinete”, não podia pois dispensá-las na sua criação própria. 

Desde a era moderna até aos nossos dias, séculos de escrita e de reflexão sobre as relações entre o ato criativo e a experiência da subjetividade, vieram retirar às musas, representantes do génio natural e habitualmente associadas à imagem do poeta possuído por forças de cariz sobrenatural, fixada em Platão, que associava a criação poética a uma forma de loucura ou mania, a transcendência de que gozaram até ao século XIX, através das poéticas românticas.

Com os versos finais de “To the Muses”, de William Blake (1757-1827), um poema que prenunciava já uma nova consciência poética, apoiada na liberdade criadora, as nove musas da tradição ensaiam um canto de despedida: “How have you left the ancient love / 

That bards of old enjoy’d in you! / The languid strings do scarcely move! / The sound is forc’d, the notes are few! “. 

Maus dias lhe estavam destinados, mesmo porque a poesia, entendida como trabalho e artefacto, não tardaria a ganhar terreno sobre a palavra soprada. Baudelaire, que em “Les Fleurs do Mal” (1857) lhe dedicará dois significativos poemas – “La Muse Malade” e “La Muse Vénale” -, introdu-las em perímetro citadino, retira-lhes os brilhos dourados, os pezinhos de veludo, corta-lhes as asas e pisa-lhes os calos do mistério. Se no primeiro texto o poeta se dirige à musa com familiaridade (“Ma pauvre muse, hélas! qu’as tu donc ce matin?”), não sem lastimar o seu atual estado de fragilidade, no segundo confronta-nos com uma figura feminina em decadência, sujeita a uma prostituição miserável. 

Longe dos tempos áureos das suas origens míticas, debilitadas, incapazes de fazer faiscar um entusiasmo, as musas baixam das alturas do sagrado ao terreno bem mais modesto dos mortais. A consciência de crise da figura da musa acompanha a dessacralização da poesia e da figura do poeta, encenada por Baudelaire num dos poemas em prosa de “Le Spleen de Paris” (“Perte d’ Aureole”, 1969), o qual deixava antever o anonimato do poeta, não sem algum alívio. 

A própria figura mítica de Camões que, aureolada pela sua condição de poeta sublime e maldito, atingiria o seu auge em finais do século XIX, não será poupada. Basta pensar, por exemplo, no lugar e na posição em que vamos encontrar o cantor máximo das glórias de Portugal num célebre poema de Jorge de Sena, “Camões na Ilha de Moçambique”: “num recanto em cócoras marinhas”, escandalosamente nu e numa desconcertante produção destinada às… Ninfas. 

Num ensaio de 1933 centrado na expressão artística, García Lorca distingue três figurações da criação – o anjo, a musa e o duende – e propõe o que há muito se desenhava: “dar un puntapié a la musa”. Cansada, corroída pelo uso convencional, parecia a musa agora incapaz de um contra-ataque. 

Feitas para durar, a verdade é que as musas da tradição, embora tantas vezes projetadas para as margens da criação poética, não se dispõem a bater a asa. Elas mantêm-se em jogo, como testemunha a nossa poesia contemporânea. E mesmo aquela que recusa colocar-se na dependência dos caprichosos favores da inspiração não as dispensa. Veja-se, entre vários exemplos possíveis, Ana Luísa Amaral e o poema “Nem Tágides, nem Musas”: “Nem rio nem lira / nem feminino grupo a transbordar:/ só o que herdei em força não herdada,/ em fonte onde o luar/ não está”. Ou Vasco Graça Moura, um poeta que, como é bem sabido, descrê da inspiração mas não recusa a “poção da musa”. Se há autor a quem não se ajusta a imagem do poeta possuído por irreprimíveis forças estranhas, Graça Moura é claramente esse autor. Mas a verdade é que sabe fabricar a imagem em momentos de conveniência. E foi justamente o que fez na presença de uma namorada que o queria retratar, decerto sensível àquela loucura divina de quem perde a razão em favor do sopro das musas. Esse momento de fingido “furor poeticus” ficou registado em “retrato em causa própria” (sonetos familiares), um poema que atualiza o mito do génio, a que o poeta contrapõe a lição de Horácio: “dei-me ares de autor em transe de altos partos, / despenteado mental de então e de antes, / friamente romântico, a três quartos./ assim me simulei. eu acredito / mas é na técnica. nunca a inspiração / me deu fosse o que fosse. nem um grito. // feito a sanguínea, prefiro-me artesão. / escrevo e rasuro, volto a escrever, repito.” 

Expostas ao pó dos séculos, as musas tendem a converter-se em frias figuras de museu, o nome originariamente dado ao templo das Musas. Assim nos surgem num poema de “As Regras da Perspectiva” (1990), de Nuno Júdice, que põe à consulta do leitor o catálogo tradicional das musas nas atribuições específicas que lhe foram cometidas a partir do século II, e exumadas, uma a uma, pelo trabalho criativo do poeta: Calíope (Poesia Épica), Clio (História), Érato (Poesia amorosa ou erótica), Melpómene (Tragédia), Talia (Comédia), Terpsicore (Dança e Canto), Euterpe (Poesia Lírica e Música), Polínia (Oratória), Urânia (Astronomia). Senis e apáticas, “as nove mulheres” desfilam na cena do poema (“cena mitológica”) sem qualquer aura de mistério, incapazes de insuflar num beijo o segredo do verso perfeito. De resto, é o próprio poeta que, num convite à inovação, as interpela para as despertar do adormecimento, da falsa eternidade em que mergulharam.

Arrancadas ao trono luzente em que os Antigos as tinham colocado, as musas instalam-se, no contexto português e ao longo do século XX, em assentos menos consagrados, nem sempre disponíveis para a poesia. “O que fazer com a musa?” é a pergunta que o mesmo Nuno Júdice se faz noutro poema sugestivamente intitulado “O Problema da Musa”, ao vê-la, frívola, ociosa, sentada no sofá, aparentemente esquecida do seu papel, entretendo o tempo “com uma revista na mão,/ como se estivesse à espera de entrar/ para a consulta”. E todavia, influindo ainda no acto criativo através do que poderíamos designar por serviços mínimos, a musa mantêm-se em cena, podendo mesmo retomar a sua velha função inspiradora e uma dimensão erotizada que, na verdade, nunca deixou de ter. É o que acontece com a criatura etérea que, num desembaraço alado, próprio das musas, transpõe o vidro do elétrico para se sentar no colo do poeta José Gomes Ferreira: “Uma mulher de carne azul, / semeadora de luas e de transes, / atravessou o vidro / e veio, voadora, / sentar-se ao meu colo / na nudez reclinada / dum desdém de espelhos.// (Mas que bom! Ninguém suspeita / que levo uma mulher nua nos joelhos.)”

Voadora e azulada se mostra também a (des)musa de Alexandre O’Neill, Albertina de seu nome, “quase mulher e muito mosca”. Sem chamada prévia, acorre à página em branco e demora-se no papel como um “insecto-insulto”, distraindo em vez de inspirar. E não alcança o poeta maneira de se livrar de tão indesejável visita, tratada sem-cerimónia: – “Albertina!, deixa-me em paz, consente/ Que eu falhe neste papel tão branco e insolente/ Onde belo e ausente um verso eu sei que está!” 

O espaço poético de Graça Moura, um poeta que não conhecia “a tortura da página em branco ou a agonia visceral da produção literária”, é um lugar muito frequentado pelas musas, cabendo-lhes uma função de mediação entre o poeta e os diversos níveis da realidade, seja ela sensível, inteligível, sonhada ou transfigurada. Oscilando inspiradoramente entre a escrita do mundo e o mundo da escrita, unindo territórios, nela se passeiam, em novos arranjos, e nem sempre à distância do intocável, com aquela “descontracção irónica” que se tornou a imagem de marca da sua poesia, sujeitas às flutuações da (auto)ironia.

À imagem clássica da musa responde o autor de “instrumentos para a melancolia” com admiráveis figurinos. Veja-se a que no poema “expo’98” (giraldomachias) surge repentinamente a seu lado, numa materialidade erótica que os jeans e a t-shirt encharcada que veste (“umbigo à mostra acima da fivela do cinto”) mais acentuam, lhe pede um cigarro e logo desaparece, não sem antes expelir uma baforada – o equivalente irónico do sopro divino -, seguida de um sorriso que se dissipa numa atmosfera deceptiva. Vendo frustrada uma hipotética conquista amorosa, resta ao poeta conformar-se com a sua condição de simples e desamparado mortal: “as musas são assim,// lustrais, perladas elásticas e jovens./ pedem-nos lume, dão-nos fumo e partem logo.”

Menos evanescente, e contudo inseparável da tradição oral (a julgar pelo qualificativo que o poeta lhe aplica: rapsoda) e de uma ideia de visitação que sempre dispensou o cerimonial do aviso, é a musa, igualmente fumadora, que comparece noutro poema de Graça Moura, “musa, quando você se despe no meu quarto”. Aos ténis prefere esta os tacões altos, investidos da especial função de libertar humoradamente o acto criador das suas névoas mitológicas. Nos seus adereços e na sua pintura agressiva, ela evoca a musa venal de Baudelaire, pelo que não surpreende que o poeta com ela mantenha um trato íntimo, uma cumplicidade quase doméstica: “e você, rapsoda, ainda há pouco/ semitaconeando insinuava projectos/ do alto desses saltos que transmitem/ esguia vibração aos seus artelhos”. Às urgências do corpo e ao tempo da fruição, seguem-se as premências da escrita, com as suas solicitações exteriores, e a cujo labor convém o fim da visitação da musa, já que o poeta, aqui, sintoniza com os clássicos, defensores do aproveitamento racional do tempo: “partilharei consigo ocupações pontuais,/ tenho agora de escrever sobre picasso/ visto do porto”.

Fernando Assis Pacheco, um poeta sempre pronto a escoucinhar a tradição, não se descrevesse a si próprio como “um bruto refinado”, não nasceu para secretariar as musas nem para a grandiloquência, que, aliás, considerava “pulha no estado actual da economia”. Há até fortes razões para supor que às musas não desse tratamento diferente daquele que receberam, na sua página poética, outras divindades mitológicas: “mando Minerva e a Porta apanharem / onde o macaco mete com vossa licença as nozes”. O título dado ao volume onde, em 1991, reunia toda a sua produção poética, “A Musa Irregular”, logo indiciava um divórcio da musa, que não era para ele um bem cobiçável, e uma depreciação da poesia entendida como exercício inspirado e solene. 

Irregular é, na verdade, a musa de Vasco Graça Moura, podendo revelar, na sua face maligna, um inesperado poder agressor que ganha forma na mais famosa e terrível das Górgonas, uma figura de cabeleira serpenteante e dentes imensos que petrificava com o olhar – Medusa: “é quando a musa às vezes é medusa / hipnótica na noite, a que nos ladra / se o sono que não temos não lhe quadra / e dos nossos destinos se descruza, […] e a apagar tudo o mais que se recorde, / com os dentes em sangue, morde, morde.”

Bem mais inofensiva, podendo embora causar sérios estragos, é a musa que surge em três poemas de “Limite de Idade” (1972), de Vitorino Nemésio, um livro que é a expressão perfeita da união da ciência com a imaginação. Trata-se de uma musa invisível a olho nu e responsável por alguns estados febris, a perigosa Escherichia Coli: “Musa micrónica, etérea, / Mas não já de éter sulfúrico / Senão feminil bactéria. / Por ela todo estremeço / Em suor e acido úrico.”. 

“Os antigos invocavam as Musas”, escreveu Álvaro de Campos num conhecido poema, fazendo coincidir o seu sumiço com a ausência do sujeito, tornado mera projecção, evidência de um vazio. Os modernos, num misto de aproximação e distanciamento irónico, invocam – e provocam – a musa, sucessora nem sempre condigna da Musa Antiga, espécie de divindade de pequeno formato, sempre pronta a acumular funções, como, mais recentemente, nos mostrou Jorge Fazenda Lourenço, um poeta que mantém com ela uma familiaríssima relação: “Ó musa, amusa-me lá,/ Diverte-me cá do tempo,/ E destes olhos m’usa/ Até finar-me lento”