Uma razia

Depois de uma inspeção ao terreno, a minha mulher e a minha cunhada fizeram um balanço desastroso: estava tudo destruído e algumas plantas poderiam não sobreviver à devastação

Um telefonema alertou-nos para a ‘catástrofe’: um rebanho de ovelhas – cerca de 150 ou 200 – tinha entrado na nossa propriedade no Alentejo, comendo tudo o que apanhou à boca. 

Há quem chame ‘monte’ às propriedades alentejanas, mas não é correto: monte é apenas a casa, sem englobar o terreno. O nosso tem cerca de quatro hectares e meio, na zona de Estremoz, e os proprietários são, além de mim e da minha mulher, o meu cunhado Rui Silva (de quem sou amigo desde os 10 anos) e a mulher, Alzira Cabrita.

O terreno é fechado a toda a volta, em parte por uma cerca tradicional, de estacas de madeira e arame, e noutras zonas por um muro de pedra solta de xisto, muito comum naquela zona. Sucede que, num determinado lugar, o muro é pouco mais alto do que um terreno contíguo – e foi por aí que se deu a invasão.

Aparentemente, o rebanho ficou mais do que um dia aboletado no nosso terreno, cujo chão estava em largas zonas coberto de excrementos – incluindo os pátios e os terraços pavimentados. Os excrementos das ovelhas são formados por pequenas bolinhas de cerca de um centímetro de diâmetro, que elas expelem às dezenas de cada vez. Mas viam-se outros, mais volumosos, pelo que concluímos que haveria outros animais à mistura.

Quando lá chegámos, o espetáculo era desolador. Os excrementos já tinham sido varridos dos terraços e dos pátios, embora fossem muito visíveis nas zonas de terra. Mas tudo o que a minha mulher e a minha cunhada Alzira tinham carinhosamente plantado nas imediações da casa estava comido. Não havia vestígios de flores nos vasos e nos canteiros. E as plantas maiores – arbustos, sebes e trepadeiras – estavam roídas até onde os animais chegavam com a boca. Tinham um aspeto desgraçado: sem folhas, com os caules à mostra, como paus espetados no chão. Nem as folhas das palmeiras tinham sido poupadas – o que nos fez supor que, misturadas com as ovelhas, deveriam ter vindo cabras. Estas são muito mais vorazes e selvagens que as ovelhas, não poupando nada.

Curiosamente, só três tipos de plantas estavam intactos: os loendros (arbusto com umas flores vermelhas, brancas ou cor-de-rosa, muito usado nos separadores das autoestradas), as alfazemas e os alecrins. Os loendros são altamente venenosos, pelo que não estranhámos serem poupados (é muito curioso os animais saberem aquilo que lhes faz mal). Quanto às alfazemas e aos alecrins, talvez tenha sido uma questão de paladar.

Depois de uma inspeção ao terreno, a minha mulher e a minha cunhada fizeram um balanço desastroso: estava tudo destruído e algumas plantas poderiam não sobreviver à devastação. Procurei animá-las. Disse-lhes que a natureza se encarregaria no essencial de reabilitar o que fora estragado. E que havia situações muito piores.

A tragédia de Pedrógão acabara de acontecer. Disse-lhes, procurando consolá-las: «Vejam lá, por aqui passou um rebanho de ovelhas e estamos desolados. Pensemos em como estarão as pessoas por cujas propriedades o fogo passou, queimando as culturas e os animais que significavam a sua sobrevivência e até, em muitos casos, as casas onde habitavam». Mas estas palavras tiveram o efeito exatamente contrário ao pretendido: «Não digas mais nada, que isso ainda nos enerva mais!». Não admitiam que eu desvalorizasse as consequências da ‘desgraça’ que nos calhara em sorte.

Apesar desta reação desfavorável, julgo ser esta a melhor forma de encarar os problemas. Quando alguma coisa corre mal, é possível sempre pensar que poderia ter corrido pior. E no momento seguinte, para minorar o desgosto, é bom começar a imaginar o modo de ultrapassar a situação. O pior de tudo é ficar a olhar para trás. É ficar encalhado no problema. A atitude correta é concentrar a atenção na solução – conseguindo, até, fazer dos problemas oportunidades.

Isto é, aproveitar a destruição para refazer o que estava menos bem.

E é assim que devemos olhar para Pedrógão e para a devastação que tem atingido a nossa floresta. Devemos aproveitar a oportunidade para refazer o que estava feito mal feito. Devemos aproveitar a área ardida para reflorestar com mais critério, para reconstruir com mais critério, para não dispersar tanto a habitação pelo campo, concentrando-a mais. Para refazer com mais segurança os sistemas de comunicação. Os incêndios têm um efeito devastador mas também um efeito purificador: obrigam a recomeçar de novo, com mais sabedoria. 

No que respeita à invasão de que fomos vítimas no Alentejo, a ideia é a mesma. Aproveitar para refazer o muro com mais altura e substituir algumas plantas de que não gostávamos muito por outras mais vistosas. Chorar sobre o leite derramado não adianta nada. Quando o azar nos bate à porta, é preciso olhar em frente.