Biografia de um poema. A pedra que ainda ameaça o voo e algumas cabeças

Estreia hoje, no Teatro do Bairro, “Biografia de Um Poema”, um ensaio que leva para palco a polémica provocada por um poema aparentemente inofensivo de Carlos Drummond de Andrade que acabou por rachar o meio literário brasileiro e abrir caminho ao modernismo

Toda a pedra ameaça um voo e dói já, por antecipação, em algumas cabeças. Talvez isso explique como o “poeminha da pedra” de Carlos Drummond de Andrade, surgido em 1928, se tornou a atração principal do que uma boa parte do meio intelectual brasileiro tomou como o circo itinerante do modernismo, o qual, nas suas provocantes rondas, não deixaria ninguém indiferente.

Aquele poema viria a ganhar uma vida inesperada; pode dizer-se que foi de pedra a montanha, tendo, pelo meio, aprendido a voar. Isto ocorreu porque, na sua longa carreira ainda hoje não terminada, houve sempre outra mão para levantar a pedra que o poeta deixou no meio do caminho, e antes que o caminho ultrapassasse a comoção e pudesse ser trilhado por toda a gente, foi desencadeando um tropeço fabuloso, e mesmo um choque em cadeia. Isto entre quem repudiou aqueles dez versos, com a sua obsessiva mecânica repetitiva, e a instalar para sempre na cabeça do leitor um eco cheio de possibilidades: do frívolo ao maravilhoso, o que acontece sempre que alguma coisa que surge no caminho de toda a gente, por um efeito de prestidigitação, resvala para fora do banal e se torna inesquecível.

É curioso hoje lembrar as reações de irritação, às vezes ira, que o poema, afinal, “um texto insignificante”, segundo Drummond, “um jogo monótono, deliberadamente monótono de palavras” causou, de tal modo que décadas depois de o ter escrito, ainda se sentia envolvido “numa atmosfera de escárnio”, como se o poema tivesse profetizado e desencadeado num mesmo passo esse obstáculo no meio do caminho, essa pedra que não o deixou mais, e tornou-se o seu fado.

Mas veja-se a ira de um tal Gondin da Fonseca que reagiu assim ao poema: “O sr. Carlos Drummond é difícil. Por mais que esprema o cérebro não sai nada. Vê uma pedra no meio do caminho – coisa que todos os dias sucede a toda a gente (mormente agora que as ruas da cidade inteira andam em conserto) e fica repetindo a coisa feito papagaio. Homem! E não houve uma alma caridosa que pegasse nessa pedra e lhe esborrachasse o crânio com ela?”

Assim estavam as coisas. E Drummond tinha entretanto seguido em frente, ainda que a pedra não lhe saísse do caminho. Depois de “Alguma poesia” – o livro de estreia originalmente publicado em 1930, e de que fazia parte “No meio do caminho” –, vieram outros livros que já não deixavam grande margem para se menorizar o génio do poeta. Livros como “Brejo das almas” (1934) e “Sentimento do mundo” (1940), ao qual se seguiria a reunião desses três primeiros em Poesia, acrescentado de mais um inédito, “José”, e isto em 1942, na prestigiada editora José Olympio. O título seguinte deu cabo de vez do julgamento apressado dos que da arte agarram o rabo para travar o impulso das suas investidas. Esse livro é “A rosa do povo” (1945).

Ainda para que se perceba o fenómeno, é importante explicar o que levaria Drummond a compilar e organizar, ao longo de anos, tudo o que foi saindo na imprensa sobre o seu poema. Como ele recordaria mais tarde, foram os próprios “professores de português, ainda sem curso de letras, geralmente bacharéis de formação literária convencional [que] espalhavam pelo Brasil inteiro, nos Ginásios, que o modernismo era uma piada ou uma loucura, e como prova liam o poeminha da pedra”. Assumindo como aquilo o magoou, Drummond lembra-se dos tempos em que o nome dele era motivo de gozo nacional: “Sucesso absoluto de galhofa. Imagem gravada na mente de milhares de garotos, que daí por diante assimilariam o conceito de modernismo-pedra-burrice-loucura”.

A vingança não foi servida num prato e nem sequer fria, foi, sim, o futuro que cresceu daquela pedra. Mas antes ainda, foi com a paciente dedicação de um arquivista, revelando o outro lado do poeta capaz de fazer disfuncionar tudo, que Drummond usou dos seus dotes de funcionário, o burocrata que ocupou tão dignamente as funções de chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública. Em 1967, 40 anos depois do seu poema ter aparecido pela primeira vez, publicou o livro “Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema”.

Reeditado em 2010 pelo Instituto Moreira Salles, com organização de Eucanaã Ferraz, além de nova introdução, acrescentou novas secções às originais, com a atualização dos ecos que o poema continuou a receber dentro e fora do país; o livro esgotou novamente. As duas edições são, por isso, tesouros da história literária do Brasil. Tratou-se de um gesto exemplar do poeta que, como Ferraz refere na introdução, não se tentou “defender com o alardeamento de prémios e glória incontestáveis, nem eclipsou, por meio de cauteloso silêncio, a relação traumática entre o poema e seus leitores”. Ao invés disso, a “biografia de um poema” foi a forma que o poeta encontrou de devolver aos leitores as reacções que tiveram perante o poema: “Drummond colocou-os diante de um espelho cuja imagem refletida tinha o efeito expressivo de uma caricatura.”

O livro é um manancial, uma extensa e refractada crónica da vida do poema que acabou por se transformar num dos grandes personagens do modernismo literário brasileiro. E foi para outras línguas, e o livro começa pelas traduções, vai para os comentários, a chamada fortuna crítica, os arranca-rabos, as diatribes que provocou, e as anedotas, tantos outros poemas que inspirou, e a forma como a pedra no meio do caminho, quieta, foi-se arrumando ao próprios discurso como um provérbio, ficando a sensação de que se uma pedra tivesse sido descoberta numa passagem enigmática da Bíblia não teria sido alvo de um menor furor exegético.

Contudo, talvez nem os brasileiros contassem que esta irónica ordem com a qual o poeta acabou por ter a última palavra, caçando a desordem que o seu poema gerou, viesse ainda a inspirar uma peça de teatro. Meio século depois da edição original de “Biografia de um poema”, entra em cena António Pires, hoje um dos mais audaciosos e inventivos encenadores portugueses, e o Teatro do Bairro, com um espetáculo que recupera e leva adiante o estremecimento que aquela pedra provocou. Como posta lá, tão imóvel no meio do caminho, afinal, quebrou o espelho e desassossegou um país. Ainda que depois se tenha feito de sonso, Drummond sabia como tinha engendrado uma subtilíssima, quase perfeita provocação, a começar pelo seu ar ingénuo, aquele inofensivo “poeminha da pedra”. De qualquer modo, a altura do voo até ao poeta surpreendeu: “Pois a essa altura a pedra havia assumido aspetos existenciais e filosóficos que nunca me passaram pela cabeça. A pedra é um símbolo! É uma besteira! Genial! Idiota! Etc. Afinal: ficou divertidíssimo. Foi o único caso de agressão que, por sua continuidade e generalização, me machucou.”

Para acompanhá-lo nesta desarrumadíssima reflexão, que abre o livro, tira algumas das passagens e momentos mais sugestivos e os dispõe numa sequência dialética genial, António Pires convidou a atriz portuguesa Rota Loureiro e os dois atores brasileiros, Cassiano Carneiro e Chico Diaz. Narrativa, propriamente dita, não há. O que temos é a construção de raiz de um confronto entre o palco e a plateia que chuta todas as muletas do teatro. Já estando encontrada a personagem, o poema dos dez versos que chama a monotonia para artilhar uma escandaleira divinal, o que há agora a fazer é puxar o contexto, desarmá-lo, criar um ritmo e um compromisso, ir conduzindo o público a esse fascínio que enredou tantos, até o próprio poeta, ao dar-se conta da multiplicidade de lados e ângulos, dessa estranha aliança entre ele e os seus leitores: “… descubro a estranha relação que nos prende a ambos. Leitor e eu formamos um bicho composto, uno e dividido, uma parte querendo engolir a outra. Sem o leitor, não existo; sem o escrevedor, ele também não. É uma relação dialética, da qual resulta (será?) a terceira figura que não sei como definir, um ser que existe no papel e nos olhos, feito de troca, de abandono, de crítica, de desconfiança, de indignação e carinho… de amor? Ia acrescentar este nome. Calo-me.”

Trata-se de um excerto de uma crónica que Drummond escreveu tantos anos depois, a cinco da sua morte. E é uma de entre várias intervenções subsequentes, dado que o poeta também foi arrastado e se viu mobilizado pela própria ação do seu poema. E nesta produção do Teatro do Bairro é o texto, a dramaturgia – esta adaptação assinada por António Pires e Hugo Mestre Amaro – que consegue um duplo efeito de rotação e translação em torno daquela polémica, um texto também ele composto, que, no seu desdobramento em palco, alcança um virtuosismo e elegância notáveis.

Os três intérpretes vão articulando o campo magnético desta poderosa reflexão poética com gestos vazios que valem como se adivinhássemos neles passos de autêntica magia. A capacidade de tirar o coelho da cartola de cada metáfora, a forma como o cenário minimal, com inspiração na Bauhaus, vê os atores desdobrarem-se do repúdio à admiração, passando pela perplexidade e tantas outras zonas de sombra. O poema é atirado sobre a mesa de operações para, uma vez mais, ser forçado a assistir à sua autópsia, e, mesmo assim, consegue escapar-se.

António Pires, que além de encenador é um dos diretores do Teatro do Bairro, assume que não conhecia bem a obra de Drummond, e que este livro acabou por ser um ponto de partida. Disse ao i que continua a sentir o gosto de trabalhar a partir de poesia, como já fez antes com Ana Hatherly e Adília Lopes ou Mário Cesariny. E ressalva que não é um encanto exclusivo à poesia, relembrando como enfrentara já o desafio de traduzir para uma linguagem cénica monumentais obras literárias, como “Moby Dick” ou “Werther”.

Há inúmeros momentos, nesta peça, em que os versos e a ação se tornam a consequência irresistível um do outro, e abrem-se linhas de diálogo infinitas, até pelas trocas entre uma mesma língua que se entende tão bem, apesar dessa distância tornada sensível entre os dois lados do Atlântico, com diferenças tão curiosas e que, felizmente, nenhum acordo ortográfico poderá refundir… Linhas infinitas que levantam a pedra de cima de todos os assuntos respeitando não só à poesia como ao teatro, a arte em geral e às particularidades do modo de cada um de nós organizar a desordem e o caos à nossa volta. “A poesia surge quando o universo se torna insólito, enigmático, embaraçoso – quando a vida já não é mais evidente.”

O poeta voltaria tantas vezes a segurar aquela pedra, a recuperar o seu peso simples de uma pedra na mão, e a senti-lo como lembrança e legado que haveria de deixar ao país: Não deixarei de mim nenhum canto radioso,/ uma voz matinal palpitando na bruma/ e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.// De tudo quanto foi meu passo caprichoso/ na vida, restará, pois o resto se esfuma,/ uma pedra que havia em meio do caminho.”

Numa altura em que o teatro procura, e bem, expandir o seu campo experimental, é curioso notar como os esforços de reinvenção e diálogo com a tradição, que nos chegam de companhias como o Teatro do Bairro e o Teatro Meridional, são relegados para segundo plano face a investidas que da orientação vanguardista retêm meramente a glória vã do que assume a aparência da novidade, o arroubo inconsequente, que nada retira da lembrança e repetição, da monotonia, do caminho que vai desabrochando continuamente pelo beijo de boca a boca entre os ecos que transmitem o gosto e sabedoria das épocas umas às outras.

“Tinha uma pedra no meio do caminho”, ainda lá está, e António Pires garante que sente ainda hoje a mesma resistência da parte do público a tudo o que não siga a lógica das narrativas, algo mais abstrato, espontâneo, livre… “A palavra é liberdade, e é isso que continua a encontrar resistência”, adianta.