Aquilino Ribeiro. A força genesíaca da terra portuguesa

Foi o grande ficcionista posterior a Eça, o “mestre” da língua portuguesa. Entretanto, deixou de ser lido, desapareceu dos programas curriculares, saiu do horizonte dos ensaístas, eclipsou-se das estantes. Acontece até aos maiores num país que deposita as grandes obras no mausoléu da indiferença

A sua vida, começada a 13 de Setembro de 1885, ofereceu-lhe matéria suficiente para quatro romances: “Cinco Reis de Gente”, “Uma Luz Ao Longe”, “A Via Sinuosa”, “Lápides Partidas”.

A força genesíaca da terra portuguesa, onde fez convergir num único estrato o homem e o bicho, inspirou-lhe um hino em tom maior. Com o todo telúrico que são as “Terras do Demo” fez letra morta da topografia oficial (Terras de Paiva), atraindo à sua obra uma aura regionalista que nunca, como hoje, esteve tão fora de moda. Sempre as modas. Vale a pena lembrar que os regionalismos e arcaísmos que animam a escrita de Aquilino são menos uma crença na posteridade do antigo do que uma afirmação das potencialidades da renovação da língua literária, que liberrimamente recriou numa escrita plástica e musical de sabores inesgotáveis.

“Alcança quem não cansa”, diz o seu ex-líbris. No impetuoso caudal da sua obra, que abrange a ficção, o jornalismo, a crónica, as memórias, o ensaio, os estudos de etnologia e a história, a tradução mas também a polémica a que nunca se furtava, vemos correr a braveza das serras e das fragas, emoções ásperas, peripécias acidentadas, impulsos vitais capazes de mudar o sentido do Bem e do Mal, a arte da manha e o adagiário tradicional, enunciações únicas, mas também a reivindicação da liberdade de consciência, o traço fundamental da personalidade de Aquilino Ribeiro.

Teixeira de Pascoaes via-o “de pé no mais alto píncaro da Beira”, onde nasceu, nas terras remotas de Carregal de Tabosa, “com o berço às costas como uma geba”. Os pais destinaram-no à vida do sacerdócio, mas, na sua infância de pícaro e durante a adolescência, deu inequívocos sinais de falta de vocação para a carreira eclesiástica. O menor deles não terá sido no Seminário de Beja, onde entrou “crente, crente absoluto” e donde acaba expulso, em 1903, por insubordinação. N’ “O Homem que Matou o Diabo” ajustará contas com os traumas da experiência seminarista, que lhe serviu para “despir a carapaça religiosa” (“Um Escritor Confessa-se”, 1974). Agnóstico, Aquilino Ribeiro recusará todo o comércio com o Transcendente.

O carácter insubmisso, mas sobretudo o seu espírito inconformista, que fará dele um cidadão interveniente, da monarquia moribunda ao salazarismo, fá-lo descer da serra à planura. Em Lisboa, corria o ano de 1906, reparte-se pela escrita, a tradução e a atividade jornalística, iniciada na Vanguarda e continuada no Jornal do Comércio, O Século, A Pátria, o Diário de Lisboa, o República e em muita outra imprensa diária.

Na capital, acentua os seus ímpetos revolucionários, de pendor anarquista, na ligação à Carbonária e a núcleos conspirativos. Ao mesmo tempo que, sob esse signo, tenta afirmar-se como profissional das letras, adere em pleno às movimentações republicanas. Um incidente violento, envolvendo explosivos, seguido da acusação de bombista, vem, em 1907, abalar-lhe a vida, que conhecerá episódios semelhantes ao que então tem lugar: prisão, fuga (de contornos rocambolescos), evasão, clandestinidade, refúgio e exílio. Em Paris, transformará o desterro de foragido em permanência longa e fascinada. Integrado nos meios intelectuais e artísticos, estuda Filosofia e Sociologia na Sorbonne. A convulsão da Guerra Mundial impõe o regresso, impedindo Aquilino de concluir a licenciatura. Tinha de cumprir-se em Portugal.

Já em Lisboa, trabalha na Biblioteca Nacional, a convite de Raul Proença, mas é demitido em 1927, ocupava então o cargo de conservador, por se unir à revolta contra a ditadura militar. E ei-lo de novo em Paris – segundo exílio. E haverá um terceiro, com julgamento e condenação à revelia, por nova tentativa insurrecional. Amnistiado em 1932, fixa residência na Cruz Quebrada. “É um inimigo do Regime – assegurou Oliveira Salazar – Dir-lhe-á mal de mim; mas não importa: é um grande escritor”. Tanto assim que na década de 50 se sucedem acontecimentos relevantes para a colocação cimeira de Aquilino na instituição literária: em 1956 é eleito primeiro presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores, então fundada e de que ficará sócio n.º1; em 1958 (ano da publicação do polémico “Quando Os Lobos Uivam”) é eleito sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa.

“Terras do Demo” (1919), “Andam Faunos Pelos Bosques” (1926), “O Malhadinhas” (1949) – esse ilustre representante de certo modo de ser português –, “A Casa Grande de Romarigães” (1957), considerada a sua obra-prima, são apenas algumas das obras mais emblemáticas do seu legado ficcional. Aquilino deixou-nos também um breve mas significativo autorretrato: “Com a pena na mão, procuro ser independente, original, inteiriço como um bárbaro”.