Lear. Nem homem nem mulher para este Shakespeare

Paula Só será atriz para tudo o que Bruno Bravo quis pôr neste Lear que não sendo rei nem rainha, homem ou mulher, sendo todos, se faz humano. Numa coprodução com a Primeiros Sintomas, “Lear” estreia-se amanhã na abertura da temporada do Teatro Nacional D. Maria II

“Não é um homem”, “Então é uma mulher”, “Não, também não é uma mulher. É um homem e uma mulher”. Conversa que que se repetia, recorda Bruno Bravo, entre ele, encenador, e Paula Só, atriz, na preparação de “Lear”, a partir de amanhã em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, na abertura de temporada, e que será ponto de entrada, ou apenas um dos possíveis, para voltar a olhar para a obra inteira que é “Rei Lear”, de William Shakespeare.

Nem homem nem mulher, nem rei nem rainha então, em lugar nenhum caberá esta figura que nos surge num trono ainda na coroa – a mesma que usou Ruy de Carvalho quando também foi Lear – que há de partir em duas ao abdicar para ser Lear. Sem rei, Lear apenas, o homem a fazer-se humano percorrendo o caminho ao lado de um bobo. Sem coroa, sem trono, resta-lhe um cavalo, símbolo do que sobrou do poder para um homem a enlouquecer. Loucura que Bruno Bravo, encenador desta produção da Primeiros Sintomas em conjunto com o D. Maria II, nunca viu como “demencial”, antes “como este paradoxo que é a loucura dele a aproximá-lo, de certa forma, da verdade”.

E neste “Lear” será – como foi já Glenda Jackson no ano passado em Londres no Old Vic, Paula Só a atriz para esse homem que “quando entra na sua grande tragédia e se apercebe de que perde tudo”, se torna homem, ou mais do que isso, nas palavras de Bruno Bravo. “Torna-se humano.” Daí que não se vá encontre exercício algum de troca género na escolha de Paula Só como atriz para Lear, a personagem. “Não procurámos nada de feminino na personagem”, sustenta o encenador que vê aqui “a experiência de uma grande atriz de interpretar este texto imenso, maior do que o [a questão do] género também”.

Nota recorrente, contínua, a lembrar-nos que Lear não é homem, não é um homem, que Lear pode ser tudo, num texto que por isso mesmo a tradução de João Paulo Esteves da Silva manteve no masculino. “Há traços na figura dele na peça que são iminentemente masculinos. Ser uma mulher a dizê-los também é interessante nem que seja por os homens terem lados femininos e as mulheres terem lados masculinos – e misóginos também. Acho que é um texto que pode ser perfeitamente interpretado por uma mulher, como acontece com outros de Shakespeare, como o ‘Hamlet’.”

Mas sobre questões de quantas camadas pode ter um texto, sobretudo este texto, estamos no princípio ainda. “Ao contrário do ‘Macbeth’ ou do ‘Hamlet’, o ‘[Rei] Lear’ é mais do que o Lear: tem duas narrativas que ocorrem paralelamente e que ao mesmo tempo se fundem e, para nós, foi importante manter na adaptação essas duas narrativas. Narrativas em que ao longo de uma hora e quarenta e cinco minutos de espetáculo haverá espaço para refletir sobre a perda – “o que é, no fundo, o homem quando não tem nada?” –, sobre a família como núcleo de violência – “o sangue dos pais que querem matar os filhos, dos irmãos que querem matar os seus irmãos” –, sobre política e sobre verdade. Ou a sua impossibilidade.

Numa época que não existe

“Realmente a verdade, ou a ideia de verdade, é qualquer coisa que esta peça demonstra que não é possível em sociedade.” Entre três irmãs sobra Cordélia como o seu último reduto. Cordélia a responder “nada” quando Lear lhe pergunta o que tem a dizer sobre ele. “É a única das irmãs que diz a verdade – e é desajustada quando a diz. É uma atitude excêntrica. Diz o que lhe vem à cabeça e nós não podemos dizer o que nos vem à cabeça.” E aqui Bruno Bravo encontra um dos maiores pessimismos deste texto, a dizer-nos que “é como se na sociedade não existisse lugar para a verdade no seu estado mais puro”.

Perguntas que vêm do princípio ao fim deste “Lear” que a Primeiros Sintomas leva a palco a preto-e-branco, despojamento quase obrigatório quando se quer chegar a uma época antes de todas. “É uma época que não existe, no fundo, porque o texto foi escrito no século XVII mas em princípio, isto passar-se-á antes de tudo, numa altura em que não há nada.” Imaginar o mundo em sete ou oito séculos antes de Cristo será imaginar então o princípio em que vem Lear também como “figura que inicia a Europa ou o Ocidente”, num “início político e de ideia de Homem”. E estamos de novo nessa ideia da Europa.

A velha Europa, a nova Europa, que saberá alguém onde vai dar? Não sabemos como não sabemos, não imaginamos, o que será tudo depois de “Lear”, deste final em que vem Edgar decretar o princípio de um tempo de verdade. “Se por um lado pensamos que acabou bem, por outro lado pensamos que vai ser um desastre. Há uma inocência muito grande neste discurso.”

Falta ainda pensar no texto, que viverá por si entre as vozes, os atores quase imóveis em palco. “O ‘Lear’ é uma peça de teatro mas é também uma peça literária, um livro, que por isso se completa inteiramente na imaginação”, sustenta o encenador. “Acho que era possível alguém dedicar a vida toda a fazer o Lear que mesmo assim não viveria o suficiente para encontrar tudo, portanto com a sua componente poética e literária fortíssima, a peça é também um livro.”