Carlos Conceição. “Muitas vezes trabalho sem ter as respostas”

Trabalhar é a procura. E entre o universo romântico e o gótico, as referências pop e os regressos que se fazem já rotina a toda uma Angola por filmar, algures havemos de encontrar o realizador de “Coelho Mau”. Segundo de uma série de três perfis dedicados aos autores das “3 Novas Curtas Portuguesas”

Coelho mau ou nem por isso desta fita há de ser João Arrais, ator para tudo o que Carlos Conceição quiser filmar, ou quase. Ao lado de Isabel Ruth, foi Miguel em “Versailles”, filme que o realizador acredita ter tornado de uma vez possível este que tentava tirar do papel desde o seu primeiro, aquele “Carne” em que Isabel Moreira é uma freira à procura de companhia durante a noite e que lhe deu o Prémio Novo Talento Fnac no IndieLisboa de 2010. E é assim para Carlos Conceição, uns filmes a continuarem os outros, a equilibrarem-se em mundos e em processos, simultâneos tantas vezes. Numa sessão exclusivamente de curtas promovida pela Midas Filmes de Pedro Borges, “Coelho Mau” continua ao longo desta semana em sala, no Cinema Ideal, em Lisboa, e no UCI Arrábida, no Porto, experiência rara para o espetador dadas as dificuldades à distribuição comercial com que se debate este formato em que ele vê “o futuro”.

“É o formato perfeito, não é à toa que os primeiros filmes da história tenham sido de curta-metragem. E é um formato que se presta muito mais às janelas do futuro. É óbvio que sentarmo-nos numa sala não é o futuro, é o tradicional, mas vivemos numa época de mensagens curtas. Mais do que a longa-metragem, a curta é um formato de futuro, a par da websérie”, sustenta o realizador numa conversa em vésperas da estreia em sala de “Coelho Mau”, programado na sessão “3 Novas Curtas Portuguesas” entre “Cidade Pequena”, de Diogo Costa Amarante, e “Farpões Baldios”, de Marta Mateus. “É uma questão de hábito. Acho muito bom que o Pedro Borges faça isto e estou muito orgulhoso por o meu filme fazer parte desta versão experimental Acho que a curta-metragem precisa de ser tratada pelos festivais, pelos distribuidores e pelo público com o mesmo respeito que as longas.”

E se boa parte do sucesso do cinema português dos anos mais recentes veio das curtas, Carlos Conceição não tem dúvidas que isso terá sido resultado de “uma péssima existência do ICA” com as dificuldades de financiamento para projetos maiores a obrigarem os jovens realizadores a demorarem-se por esse formato. Causas ou processos à parte, Carlos Conceição acredita que “o resultado tem que ser assumido como uma coisa positiva”.

À pergunta curta ou longa o realizador há de responder então curta. Mesmo com os projetos em que tem trabalhado entre a finalização e a estreia de “Coelho Mau” em Cannes, na paralela Semana da Crítica, que em Portugal teve a sua primeira exibição nas Curtas Vila do Conde. E curta apesar de em mãos e para terminar em 2018, Carlos Conceição ter duas longas, as suas primeiras. “Flores para Godzilla”, regresso ao Miguel que foi João Arrais, bem dizíamos, em Versailles para “uma espécie de sátira social na onda do ‘Boa Noite Cinderela’”, estreado na mesma secção paralela do Festival de Cannes em 2014, com o tema da luta de classes também em foco, e ainda “Serpentário”, um outro tipo de produção num registo documental em que encontraremos João Arrais, de novo, não como Miguel, mas como o realizador num regresso ao seu país, que é Angola, em busca do fantasma da mãe, num cenário pós-catastrófico.

Mas esse, “Serpentário”, do qual mostrou já um excerto, em forma de curta, no DocLisboa de há dois anos, com o título “Acorda, Leviatã”, é um filme a fazer-se sem prazos, sem pressões. “É um filme de muito pormenor e de muito detalhe, mas é um filme que fiz sozinho. Eu e o João Arrais. A montagem e a mistura de som não serão feitas por mim, mas na rodagem éramos só nós.”

E para a rodagem deste filme que Carlos Conceição começou num regresso a Angola depois de uma ausência de dez anos, entre 2002 e 2012, fizeram os dois três viagens, como o filme será uma viagem, de João Arrais como Carlos Conceição à procura da mãe, que continua a viver em Angola. “Gosto muito de trabalhar com o João Arrais, primeiro porque quase não preciso de o dirigir: como com a Anabela Moreira, também ele já habita o estilo e o universo que eu gosto que os meus filmes habitem. E por outro lado porque me revejo muito nele e é muito fácil colocá-lo a fazer de mim quando tenho que estar atrás da câmara. É um descanso porque faz sentido, é uma coisa muito visceral.”  

À parte dele não haverá mais personagens aqui, tirando as reais. “É tudo real além dessa premissa que nem é do foro da ficção, é do foro da alegoria: a catástrofe não só é uma metáfora para a guerra civil de Angola que deitou abaixo o país mas também uma espécie de antevisão do futuro de um ponto de vista ecológico quase.” O que aconteceu não se sabe nem interessa. “O que interessa é que houve uma devastação e que ele atravessa uma paisagem pós-catastrófica”, com tudo o que encontraremos de Angola, esta Angola que foi redescobrir o realizador ao fim de dez anos de um afastamento que parece ter ficado no passado. Que destas viagens que se fazem regulares vêm agora ideias como a de mais um filme na Baía dos Tigres, que já começou a preparar. Ilha fantasma de quase impossível acesso em que existe apenas uma cidade abandonada desde 1974. “Uma metáfora perfeita para o processo de descolonização, em que queria trabalhar a seguir.”

Entre regressos a uma Angola que Carlos Conceição encontra por filmar e os universos do romantismo (que estudou na Literatura, no Lubango, de resto, antes de ter partido para Lisboa para estudar Cinema) e do gótico e de todas as referências pop que habitam o universo particular que é o de Carlos Conceição veio-nos este “Coelho Mau” como a maior de todas as produções que teve em todos os seus filmes, curtas ou longas. “Acho que os processos se completam uns aos outros, como se cada filme fosse resultado do anterior. O ‘Coelho Mau’ é resultado não apenas da estreia do ‘Boa Noite Cinderela’, de o filme ter sido bem recebido e de me terem falado tantas vezes em sátira, em romantismo, em gótico, em farsa, em melodrama, mas sobretudo como uma produção megalómana que vem justamente no minimalismo da experiência anterior.”

Para Carlos Conceição, desde o tempo em que trabalhou ao lado de João Canijo ou de João Pedro Rodrigues até avançar para aquela sua primeira curta, que tudo tem sido no fundo isso, essa procura num processo de introspeção. “Tudo me ajuda a pensar, a fazer introspeção e essa introspeção é que muitas vezes me traz as respostas e alguma clarificação. Muitas vezes trabalho sem ter as respostas, trabalho quase como se estivesse à procura.”  

 

“Cidade Pequena”, de Diogo Costa Amarante, “Coelho Mau”, de Carlos Conceição, e “Farpões Baldios”, de Marta Mateus estão em sala no Cinema Ideal, em Lisboa, e no UCI Arrábida, no Porto.

Coelho Mau: Protagonizado por João Arrais, Júlia Palha, Carla Maciel e Matthieu Charneau, “Coelho Mau”, em que Carlos Conceição teve como assistente de realização Diogo Costa Amarante, teve em maio a sua estreia internacional numa sessão especial da Semana da Crítica, em Cannes, com os aclamados “Les Îles”, de Yann Gonzalez, e “After School Knife Fight”, de Caroline Poggi e Jonathan Vinel.