Uma mensagem para as minhas netas

Lá diz o slogan: ‘Todos iguais, todos diferentes’. Particularmente sou amigo de pessoas com ideias diferentes das minhas e estilos de vida contrários aos meus

Se há coisas boas que a carreira de Medicina Familiar tem – e que a distingue das outras no Serviço Nacional de Saúde –, é precisamente a lista de utentes, onde se privilegia sempre a inscrição de toda a família. 
Assim, desde os recém-nascidos, cada lista engloba crianças, jovens, adultos, mulheres em idade fértil, grávidas e idosos (talvez a maior fatia). 
Todas as valências estão asseguradas, e por isso o médico terá de estar preparado para resolver as situações que lhes são colocadas, seja qual for a sua origem. 

Dentro do mesmo princípio, nenhum clínico está livre de ser procurado por pessoas que pensem de modo diferente do seu – no tocante, por exemplo, à religião, ideologia, orientação sexual, etc. Nestes casos, a sua obrigação é atender todos da mesma maneira e fazer o seu melhor para resolver o problema de cada um, independentemente de quem tem à sua frente.

Lembro-me de um caso que se passou comigo e que continuo a recordar, pelo muito que representa para mim. 
No final de um dia de trabalho, quando me preparava para sair do gabinete, fui abordado por duas mulheres que, com ar de comprometidas, se dirigiram a mim desta maneira: 
– Senhor doutor, aceita receber-nos na sua lista de utentes?
– E por que não havia de receber? Se tenho vagas na minha lista, e se me querem como vosso médico, não é preciso dizer mais nada – respondi. 
– É que há um problema – disse uma delas a muito custo. E olhando à volta, confidenciou-me ao ouvido: – Somos homossexuais –. E a outra rematou: – Está no seu direito de não nos querer na sua lista. 
– Mas são seres humanos como eu, não são? – perguntei, olhando-as nos olhos. – Quem sou eu para julgar os outros? Podem contar comigo. Não discrimino ninguém.

As mulheres ficaram satisfeitas e inscreveram-se na minha lista. São pessoas corretas, educadas, respeitadoras, com quem tive e tenho uma boa relação. Às vezes procuram-me para saber a minha opinião fora da medicina, e eu sempre procurei satisfazer a sua curiosidade. Chegaram mesmo a pedir-me ajuda para a resolução de problemas seus, e nunca me neguei a fazê-lo.

Muito marcadas pelos preconceitos da sociedade, estas mulheres referiram, com mágoa, terem sido diversas vezes discriminadas devido à sua orientação sexual, vivendo em sobressalto no dia-a-dia por nunca saberem a reação a esperar das pessoas com quem lidam.

Veio então ao de cima o meu ‘bichinho teatral’ e contei-lhes uma peça que tinha visto e que abordava a questão da homossexualidade de uma forma séria e isenta: A Gaiola das Loucas. 

Excelentemente representada por uma constelação de estrelas, onde brilhavam os meus amigos José Raposo, Carlos Quintas, Joel Branco e Rita Ribeiro, entre outros, esta peça conseguia obrigar cada espetador a refletir profundamente, mas permitindo que cada um tirasse as suas próprias conclusões. 

O final do primeiro ato, Eu sou o que sou, com o fabuloso José Raposo numa interpretação de arrepiar (onde vi várias pessoas de lágrimas nos olhos), bem como contracenando no fim com um magnífico Carlos Quintas (numa conjugação de valores provando que a situação em si se irá manter), dizem bem de uma realidade para a qual a sociedade tem de olhar com outros olhos, de modo a respeitarmo-nos uns aos outros e sermos também respeitados. 

Há muitos anos atrás (antes do 25 Abril), uma outra peça, O Pecado de João Agonia, de Bernardo Santareno, abordava o mesmo tema de uma forma por muitos considerada brilhante e não tendenciosa. A minha mãe, ex-professora liceal e muito ligada ao teatro e às artes de encenação com os alunos (que o digam João Lagarto e Isabel do Carmo), teceu-lhe os maiores elogios.

Tudo isto para dizer o quê? Este comportamento sempre existiu, existe e vai continuar a existir, de nada valendo ignorá-lo, reprimi-lo ou discriminar quem não pensa como nós. 

Um médico é um profissional que jura respeito pela vida, devendo aceitar a vida que cada qual decide viver, independentemente das ideias pessoais que possa ter sobre o assunto. Sou médico de muita gente que não pensa como eu, e nem por isso a relação médico-doente foi afetada. 

Lá diz o slogan: ‘Todos iguais, todos diferentes’. Particularmente sou amigo de pessoas com ideias diferentes das minhas e estilos de vida contrários aos meus – e, desde que haja respeito pelo pensamento de cada um, a amizade permanece. É esta a mensagem que quero deixar e o testemunho que desejo passar às minhas netas: se houver tolerância e respeito uns pelos outros, o mundo poderá ser melhor!