Integração de sem-abrigo. “Não me habituei à cama. Preferia dormir no chão”

Há um ano que esta república recebe pessoas sinalizadas como sem-abrigo. Cada um tem o seu quarto, mas todos dividem contas e histórias de vida. O i foi recebido neste T4 de Arroios para conhecer quem passou a ter um teto depois de anos de rua

É o Telejornal que faz com que estes três saiam do casulo para se juntarem na sala, ainda que com os olhos postos na televisão. “Damo-nos todos bem, é verdade, mas cada um tem a sua vidinha”, explica ao i Benedito Bandeira, um dos mais antigos residentes da República que há um ano serve de casa aos sem-abrigo de Arroios.

Não há espaço para todos – óbvio, até porque ainda são 27 na freguesia – e nem todos reúnem os requisitos para ocuparem um dos quartos deste T4 da Rua Morais Soares. “Tem que estar a viver na rua há já algum tempo, não ter consumos – o critério mais difícil de ver cumprido – e vontade de mudar”, resume o assistente social Hugo Marques.

Roberto vivia há dois anos na rua, por isso passava no primeiro critério. Consumos, “só álcool, mas controlado”, garante. Já a vontade de mudar, essa, foi a prova mais difícil de ultrapassar. “Não é que não quisesse viver melhor, mas era muita responsabilidade e eu tinha medo e falhar”, explica.

Roberto veio de Angola há 24 anos, onde deixou seis filhos de quatro mulheres diferentes. “É obra, hã?”, brinca. A viagem não tinha regresso marcado, tinha apenas um intuito: apoiar o pai que estava doente. A verdade é que, com 56 anos, nunca voltou ao seu país.

“Trazia guita comigo, uns 10 mil dólares. Enquanto deu, gozei o dinheiro. Em quê? Putas e vinho verde, havia de ser em quê?”.

Mas o dinheiro acaba, assim como a prontidão nas respostas de Roberto. A voz baixa quando relembra os anos seguintes. “Tive que ir para as obras, trabalho duro”, refere, ainda que estejamos a falar dos anos 90, “altura do escudo, aí é que havia dinheiro”. Ajudou a construir a Gare do Oriente e a Ponte Vasco da Gama, até à altura em que nem para construir um prédio era preciso a sua mão-de-obra.

Quando deixou de poder pagar uma renda, foi encaminhado para um centro de acolhimento. “Mas aquilo era só drogados e malucos. Entre aquilo e a rua, preferi a rua”. E foi lá que viveu durante dois anos, abrigado pelo mercado do Forno do Tijolo e na companhia da namorada, também ela já a viver numa casa. “Mas separada de mim que ela gosta de espaço”, brinca, “ela e eu”.

É por isso que Roberto, apesar de estar a viver na República há quatro meses não prescinde de uma vida sem paredes. “Saio de casa às 7 da manhã e só volto às 21h para dormir”, garante. É na rua que ganha dinheiro a arrumar carros e é na rua que se sente bem. Tão bem que, duas semanas depois de ter sido escolhido para um dos quartos desta casa, continuava a sair todas as noites para dormir fora. “Tiveram que me ir buscar. E mesmo cá, não me habituava à cama. Dormia sempre no chão”.

Da rua para a República Há um íman na porta do frigorífico que segura o papel onde os atuais três inquilinos apontam as contas a pagar. Luz, gás, água e internet são as contas partilhadas por todos. A renda é paga pela Junta de Freguesia de Arroios e o centro paroquial ajuda com a limpeza dos espaços comuns e fornece o almoço e o jantar. Mas Benedito, não dispensa as almoçaradas de domingo. “Às vezes faço um frango guisado ou um bacalhau cozido com grão. Aí sentamo-nos todos à mesa a conviver”, conta.

Tirando Hermenegildo, que está na casa desde o dia um, ou melhor, desde o dia 13 de Abril de 2016 – dia da inauguração –, mas que prefere ficar como espetador desta conversa, Benedito é o inquilino mais antigo da casa.

Quando lhe pedimos um resumo dos últimos anos, preparamo-nos para ouvir uma espécie de caixa de música a ficar sem corda. Começa entusiasmado a lembrar os loucos anos 80, quando saiu de um Portugal “onde só via burrinhos e cabrinhas” e se fez às “autopistas” de Espanha. “Nunca tinha ido a uma discoteca na vida. Nem imagina o que aquilo foi em Madrid”. Bem longe deste cenário está o regresso à capital espanhola, anos mais tarde, para uns biscates enquanto pintor de construção civil.

Tal como aconteceu com Roberto, também foi com o fim do hype económico dos anos 90 que começou a fase negra. “Foi a crise e os meus problemas de coluna, que já não me deixavam trabalhar”, conta Benedito. Os 230 euros de reforma deixaram de suportar a pensão onde vivia e para continuar a ter dinheiro para comida e medicamentos, teve de optar por viver na rua.

“Nunca me hei de esquecer da primeira noite. Escolhi as escadas do Hospital de S. José”, lembra.

A partir daí nunca teve local fixo, “para não dar nas vistas”, ainda que o aeroporto fosse o local de eleição. “Mas não pense que andava aí tipo pobre coitado”, avisa. Benedito arranjava sempre forma de tomar banho, mais que não fosse em balneários públicos, e contava com a ajuda de amigos para manter a roupa lavada.

Quando foi um dos eleitos para esta casa, já vivia nos albergues do Exército de Salvação, onde tinha banho, comida e cama partilhada num quarto de seis pessoas. “Ah, mas isto é diferente”, garante, referindo-se à República, termo que até ali associava apenas aos estudantes das universidades.

Aos 61 anos, não vê esta casa como definitiva, mas voltar atrás não é uma hipótese. Agora pode ler os livros que tinha guardado em sacos, ver os programas de televisão dos quais apenas ouvia falar e pôr em prática as receitas de família nos almoços de domingo. “Não sei até quando vou cá ficar, mas enquanto cá estiver, estou bem”.