Floresta, política e mentiras

Com mais de quarenta anos de actividade profissional em quase todos os elos da cadeia silvo-industrial portuguesa, tendo tido a sorte (nada fiz por isso) de ter vivido na primeira pessoa a Revolução de Abril de 1974 e tendo consolidado com o tempo a convicção de que o que dela mais precioso resultou foi a…

Uma Reforma Florestal anunciada e posta em discussão com tempo (muito antes dos terríveis eventos deste Verão de 2017) e um aparente consenso informal sobre a necessidade de mudar muitas coisas na nossa realidade silvo-industrial, pareciam prenunciar em finais de 2016 um futuro menos negro (literal e figuradamente) para os que vivem de e para a floresta.

As cabeças “bem pensantes” alarmam-se entretanto com a greve na Autoeuropa mas não as ouvimos, a tempo, aquando da liquidação da Cimpor (a mais internacional das empresas portuguesas) e da destruição de valor da PT (o seu CEO foi mesmo condecorado, já depois de um negócio desastroso – embora antes de se conhecerem os contornos mais “pessoais” desta “estória” – por um Presidente da República perito em matérias de economia…) e agora, bem recentemente, aquando da verdadeira “sentença de morte” a prazo, que a nova legislação, da dita Reforma Florestal, vem ditar à fileira árvore/papel em Portugal…a mudez continua!

É que se a Autoeuropa é uma empresa (importantíssima, aliás) que exporta cerca de dois mil milhões de euros/ano, que emprega directamente cerca de três mil e trezentos trabalhadores e indirectamente, provavelmente, outros tantos, num universo da ordem da meia centena de (não tão pequenas e médias) empresas espalhadas (maioritariamente) pelo litoral do pais e que é a segunda maior exportadora portuguesa, o conjunto das empresas fabricantes de pasta e papel a partir do eucalipto é, “apenas”, bastante mais do que isso !!!

De facto, esse conjunto é o terceiro maior do ranking exportador (com uma exportação semelhante à da Autoeuropa) é, de longe, o primeiro exportador de Valor Acrescentado Nacional, sustentando um cluster de mais de 60 mil pessoas: Os trabalhadores directos na indústria (também mais de 3 mil, como a fábrica de Palmela), os que no interior do País trabalham na floresta (equivalentes a cerca de 10 mil) e os muitos ,milhares, que nesse interior fazem funcionar – para apenas dar o exemplo mais espectacular e visível, de muitos possíveis – (vendas, motoristas, pequenas metalo-mecânicas, gasolineiras, etc.) uma frota automóvel que, anualmente, percorre mais de 13 (treze) milhões de quilómetros (só ida), ou seja, uma distância equivalente a 320 voltas à Terra ou quase 20 viagens de ida e volta à Lua (!), sem falar nos milhares de proprietários produtores florestais que colocam em valor muitos terrenos, de outra forma incultos ou abandonados…

O sector silvo-industrial baseado no eucalipto mereceria, por isso, mais e melhor, da parte de quem ajuda a formar opinião…

Talvez por não ser um conjunto baseado em investimento estrangeiro (é o único, aliás, de cariz industrial e com esta dimensão que é português e que protagonizou, há bem poucos anos, em Setúbal, um investimento industrial da mesma ordem de grandeza do que foi recentemente realizado pela Autoeuropa e que assim acresceu largas centenas de milhões de euros/ano às exportações nacionais de papel), a imprensa (a generalista e a da “especialidade” que tão bem – não – previu o colapso da banca e as trafulhices da economia e das contas públicas …) permaneceu e permanece, de facto e inexplicavelmente, muda…

Ora nessa imprensa (em toda ela) podemos ler diariamente afirmações oriundas de todas as “cores” que, no dia seguinte, os das outras “cores” desmentem, descaradamente e com ar sério, para serem chamados mentirosos, passado um dia, com a mesma desfaçatez, e assim sucessivamente.

Não cuido de saber – embora, às vezes o saiba – quem diz a verdade ou a mentira. Mas com o tema florestal que pode (ainda) constituir a base de um compromisso (muito mais do que um mero “consenso”) para um projecto nacional plurianual, julgo que se estão a passar as marcas da decência.

Deixo aqui três exemplos actuais de uma área que conheço bem (uma vez que estes “jogos”, no final, não aproveitam a ninguém, radicalizam os “fiéis”, afastam os eleitores e abrem portas a “populistas justicialistas”) e que arrumo sob a forma de três perguntas (que os leitores já terão feito a si próprios, no meio do “ruído” mediático suscitado por recentes, veementes e públicas declarações do Sr. Ministro da Agricultura), a propósito do tema florestal:

 

– A NOVA LEGISLAÇÃO INCLUÍDA NA CHAMADA REFORMA FLORESTAL QUE, NA PRÁTICA, VAI PROIBIR NOVAS PLANTAÇÕES DE EUCALIPTO EM PORTUGAL, RESULTA DE UM DIPLOMA QUE O GOVERNO ANTERIOR APROVARA ANTES NA CHAMADA “ESTRATÉGIA NACIONAL PARA AS FLORESTAS”?

O novo Decreto do Parlamento, incluído na chamada Reforma Florestal por proposta do Governo, tem/tem de ter (como todos) razões políticas e razões técnicas. As razões políticas são conhecidas:  Radicam exclusivamente no acordo do Partido Socialista com o Partido Os Verdes, plasmado no Programa do Governo e na súbita, posterior e entusiástica adesão à ideia por parte do Bloco de Esquerda. (O PCP, neste quadro, tinha mesmo de acompanhar…).

Quanto às razões técnicas, elas nunca foram invocadas ou descritas (nem constam do Prólogo do respectivo Diploma) mas o Sr. Ministro da Agricultura disse e escreveu várias vezes que resultavam de “um ponto” de uma matéria que já vinha decidida em “legislação” do anterior Governo.

Acontece que não existe nenhuma “legislação” do Governo anterior nesse sentido (a que, aliás, não estive, directa ou indirectamente, ligado) – como eu próprio tive ocasião de dizer em privado e, posteriormente, em público ao Sr. Ministro – existindo sim uma Resolução do Conselho de Ministros, (o que é juridicamente bem diferente de “legislação”, como o Sr. Ministro bem sabe…) conhecida por Actualização – (e não “Revisão” note-se) da Estratégia Nacional para as Florestas (de Setembro de 2006).

Ora aquela última Resolução do Conselho de Ministros (publicada no DR I Série de 4 de Fevereiro de 2015) limitou-se a ser isso mesmo – uma actualização) da Resolução do Conselho de Ministros nº 114/2006 de 15 de Setembro (que a essa actualização obrigava, aliás), aprovada (atenção, aqui!) pelo XVII Governo constitucional, maioritário do PS (tendo sido proposta pelo Ministro Jaime Silva).

Em 2015 a Resolução recomendava que em 2030 não se excedessem os 812 mil hectares da espécie [Quadro 12 inserido na página 692 (44) do DR citado, de 2015], na mesma lógica de médio/longo prazo com que Resolução anterior (do dito governo socialista) recomendara, irrealisticamente, aliás, que em 2030 a espécie não excedesse os 600 mil hectares quando, nessa mesma data da publicação, a área ultrapassava já os 700 mil hectares (Quadros 5 e 4, páginas 64 e 77, respectivamente, da Estratégia Nacional para as Florestas publicada, em 2007 pela Imprensa Nacional Casa da Moeda)

Argumentou repetidamente o Sr. Ministro da Agricultura (quero sinceramente continuar a crer que alguém o terá induzido irresponsavelmente para tal falácia) que – “de acordo com os dados existentes” – sendo a área actual de eucalipto já de 848 mil hectares (dos quais 639 mil em floresta “fechada”), ou seja, mais 4,4% que o “objectivo” da Estratégia, tornava-se “lógica e inevitável a interdição de novas áreas líquidas” de eucalipto.

Acontece que nessa mesma página da actualização da Estratégia Nacional para as Florestas, figura igualmente, no mesmo Quadro 12, como “objectivo”, ter um máximo de 789 mil hectares de pinheiro bravo, também em 2030…;

Ora a Direcção Geral do Território (ver página 20 do COS – Carta de Uso e Ocupação do Solo, no site da DGT) acaba de publicar/garantir, (“hoje”), em Maio de 2017, quando o Pacote da Reforma Florestal estava em plena discussão pública – com base igualmente “nos dados existentes”, ou seja, no mesmo Inventário Florestal Nacional que identifica as anteriormente citadas áreas de eucalipto – que o pinheiro bravo ocupa já actualmente 1 083 milhões de hectares !!! (dos quais 646 mil em floresta “fechada”), ou seja, mais 37,3% (!) que o “objectivo” daquela mesma Estratégia…

Na linha desta “exemplar” e vergonhosa batota de palavras, é altura de perguntar ao Governo (o Sr. Ministro da Agricultura tem nesta matéria, como se viu desde o início, uma margem de manobra muito limitada…),se, de seguida e pela mesma “lógica”, vai ser publicada uma lei homóloga, proibindo igualmente a plantação de “novas áreas líquidas de pinheiro bravo”…E sobre isto…está tudo dito.

 

– A REFORMA FLORESTAL RECENTEMENTE PROMULGADA PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA FOI OBJECTO DE POUCAS PROPOSTAS PELOS SEUS CRÍTICOS NA SUA FASE DE DISCUSSÃO PÚBLICA?

A proposta de Reforma Florestal foi efectivamente colocada em consulta pública pelo Ministério da Agricultura durante um período de tempo particularmente longo. Percebeu-se porém, logo desde os primeiros momentos dessa consulta pública que o Ministério iria organizar (e organizou) um conjunto de sessões sob o “patrocínio” do poder autárquico (nada que não devesse fazer, aliás), em detrimento (e isso foi mau) da audição cuidada e privilegiada dos produtores florestais e das suas Associações (que representam, “só”, 97% da área florestal do País). O Ministro da Agricultura aliás nunca escondeu que nalguns lugares encontrou fortes críticas e oposições (técnicas e socioprofissionais) mas em muitos outros (segundo ele) recebeu igualmente fortes aplausos e apoio (do poder autárquico que até pedia mais, digo eu…).

O Ministro e o Ministério consideraram que essas divergências opostas (a que atribuíram importância equivalente) eram a “prova” de que a Reforma proposta estava discutida e era “boa e equilibrada”.

Ou seja, o longo período de discussão pública não teve qualquer efeito prático sobre o conteúdo da Reforma (que devia ter sido, antes, objecto de compromissos técnicos e políticos fundados na Lei de Bases da Política Florestal – aprovada por unanimidade no Parlamento em 1986 – que pudessem garantir a sua durabilidade…!) e todo o tempo foi afinal apenas usado para “explicar” a “bondade” da mesma (e para aceitar correcções de forma).

E, sem entrar em pormenores, destaco a importante e fundamental diferença entre “compromissos” e “consensos”, como lapidarmente escreveu o Prof. João Lobo Antunes.

Importa porém reconhecer que não é a primeira vez que tal acontece com diplomas (ou “pacotes”) em “consulta” pública, na medida em que é assim que os diferentes governos (de várias cores) se habituaram a fazer…

Resumindo: não é verdade que não tenham existido críticas (seriamente fundamentadas) e sugestões (construtivas e olhando para o futuro) sobre a forma e o conteúdo da Reforma proposta. Acontece que ela já estava pré-desenhada pelos “cérebros político-florestais” do Terreiro do Paço, antes mesmo de ser discutida e aprovada numa lógica de “mais do mesmo” (agora com a restrição adicional de “sem acréscimo de despesa pública reflectida no Orçamento de Estado”).

O que se pediu afinal e apenas foi que os cidadãos e organizações se pronunciassem sobre questões de forma ou de pormenor e que, adicionalmente, não se gastasse dinheiro e…o que se aprovou – numa versão agravada por uma esquerda radical de “quanto pior, melhor” – foi essa amálgama remendada de coisas boas, más e péssimas, num ambiente emocional influenciado pelos fogos e suas causas (matérias que a dita Reforma, gizada antes dos mesmos) nem sequer aflora.

 

– É VERDADE QUE ESTA REFORMA FLORESTAL ESTÁ AO NÍVEL DA REFORMA DE D. DINIS E QUE FICARÁ PARA A POSTERIDADE?

Sendo sério mas com manifesta ironia, acho que sim… pelo simples facto de D. Dinis não ter feito nem decretado (nem sequer enunciado) qualquer Reforma Florestal!

Essa ideia (mediática) da Reforma Florestal de D. Dinis só pode ter resultado de um conhecimento panfletário e superficial da História Florestal de Portugal, uma vez que no tempo da Ditadura se ensinava uma “história desinfectada” do início da nacionalidade e D. Dinis, trovador de mérito, político (e não guerreiro) arguto, homem cultíssimo (que fundou a primeira Universidade do País e a Marinha Portuguesa e que cuidou de limitar os excessos da fidalguia sobre os seus súbditos rurais), assinando sempre com o seu nome completo, veio a ser conhecido nos livros únicos das escolas primárias como “O Lavrador” (associando-o assim à floresta e ao Pinhal de Leiria) quando, neste domínio particular, no primeiro volume (1980) da sua notabilíssima, única e rigorosa História Florestal, Aquícola e Cinegética, o Prof. Baeta Neves apenas lhe dedica dez entradas (de milhares que constituem a sua preciosa compilação até à Dinastia dos Filipes).

A maioria daquelas notas documentais tem, aliás, a ver com a caça, com conflitos de vizinhos (e com o próprio Rei), com a reserva do uso das lenhas e duas, apenas por curiosidade, dizem respeito à obrigação de conservar os “soverais e azinhais” de Campo de Ourique (hoje Ourique) onde foram estabelecidas penas (precursoras) para quem aí cortasse árvores.

E onde entra D. Dinis, afinal, no “famoso” Pinhal de Leiria?

Tendo o Pinhal de Leiria sido semeado (e também plantado) por D. Afonso III (1248/79) – pai de D. Dinis (1279/1325) e não pelo dito D. Dinis – existindo mesmo referências de que as primeiras sementeiras, para conter o avanço das dunas, teriam já tido lugar no reinado anterior (D. Sancho II, 1218/48, seu tio) – coube “apenas” a D. Dinis (e sublinhe-se que hoje, esse “apenas”, olhando para os nossos lideres políticos e florestais, não é nada pouco) proceder à regulamentação (notável e pioneira aliás), à manutenção e à defesa daquele valioso e prometedor património que no seu reinado começava já a dar “frutos”.

Fê-lo com rigor, zelo e sentido de Estado (a resina e as madeiras começavam de facto a revelar-se matérias primas decisivas para o desenvolvimento da região e do País) e deve-se-lhe mesmo a decisão visionária de alargar a sua área.

A ideia de Reforma (no verdadeiro sentido da palavra), como o próprio nome diz, tem de estar associada a uma “remodelação” (potencialmente estável e duradoura) que implique alterações sérias e necessárias a regras anteriores que, embora estáveis e pré-definidas, se vão revelando obsoletas ou perversas.

Ora a actual Reforma que, semanas antes de aprovada, acrescentou aos seus dois “pecados mortais” (clara e atempadamente enunciados): i) a municipalização/”sovietização” da(s) política(s) florestal(ais) em matéria do uso florestal do solo privado (na medida em que serão os autarcas que vão decidir que espécies florestais se poderão plantar nas propriedades privadas e onde!!!); ii) a proibição, na prática, de novas plantações de eucalipto por meras razões ideológicas oriundas de forças radicais de esquerda, sem qualquer fundamento ou racional técnico ou científico e ameaçando de morte o maior sector exportador português em termos de valor nacional acrescentado, acrescentou, como se disse antes, um terceiro “pecado mortal”, este fatal para a (indispensável) durabilidade da dita Reforma.

De facto, o pretexto usado para aprovar atabalhoadamente, no seu último dia de trabalho, as versões dos diferentes diplomas apresentados pelo Governo ao Parlamento (o Presidente da República afirmara, no meio do caos e da emoção de Pedrógão que queria a Reforma Florestal aprovada até ao final da sessão parlamentar…quando nela não existia qualquer diploma com influência directa e/ou de curto prazo com o flagelo dos fogos florestais!) conduziu inevitavelmente à procura de consensos pontuais, precários e de ocasião, baseados num equilíbrio fugaz (quando comparado com o ciclo de vida de uma árvore ou floresta) que prenunciam que a Reforma – para além dos erros ou omissões que tem ou possa ter – não tem nenhuma probabilidade séria de ser durável. Onde ficaram, nessa madrugada, as críticas e sugestões construtivas formuladas no período de Discussão Pública? Algum Partido ou deputado teve sequer acesso a elas?

E se há doença de que a floresta portuguesa tem padecido é a da “esquizofrenia legislativa” (quase sempre em reacção a um fenómeno de impacte mediático), inexoravelmente responsável, tantas vezes, pela sempre denunciada falta de estabilidade legislativa!

D. Dinis merece pois o mérito de ter dado continuidade ao pensamento que “gerou” o Pinhal de Leiria, de olhar o futuro e de quebrar com regras consuetudinárias obsoletas. Não sendo isso uma Reforma, o que ficou da sua memória não tem nada que se pareça com um conjunto avulso de diplomas de “evolução na continuidade”, engendrado em equilíbrios de pequena política onde as únicas “novidades”, já referidas, são peças técnica e politicamente absurdas, geradoras de funestas consequências económicas e sociais (como veremos, infelizmente) a curto prazo).

Percebe-se o actual entusiasmo político (mundial) de criar factos políticos “alternativos” mas isto de equiparar esta “Reforma” a uma, inexistente, de D. Dinis… parece ter sido excessivo e faz lembrar um antigo slogan, popular na “antiga” RTP: “Estes publicitários são uns exagerados!”.

E quanto a tudo isto…deixo na mão de cada um – protagonistas, espectadores e “vítimas” – a melhor forma de lhe pôr cobro, num País (ainda) democrático que continua a dispor de uma imprensa (ainda) livre: para não falar do Presidente da República que – talvez por não dispor de assessor agrícola ou florestal (que se saiba) – entendeu não se pronunciar publicamente sobre o assunto, como o fez recentemente (e bem) sobre a Autoeuropa.

 

João M A Soares, Secretário de Estado das Florestas no XV Governo constitucional, de outubro de 2003 a julho de 2004