Os enigmas e quebra-cabeças que garantem a imortalidade

Foi na precisa altura em que andava a ler o Ulisses – numa tradução do académico brasileiro Antônio Houaiss que havia em casa dos meus pais – que encontrei um dia em promoção esta pequena biografia ilustrada do seu autor. O objetivo, quando a adquiri, era ajudar-me na espinhosa tarefa de decifrar, compreender e apreciar…

Foi na precisa altura em que andava a ler o Ulisses – numa tradução do académico brasileiro Antônio Houaiss que havia em casa dos meus pais – que encontrei um dia em promoção esta pequena biografia ilustrada do seu autor. O objetivo, quando a adquiri, era ajudar-me na espinhosa tarefa de decifrar, compreender e apreciar esse romance tão célebre quanto difícil. Mas rapidamente percebi que, apesar da sua aparência modesta (tem menos de 150 páginas), esta biografia de Joyce assinada por Ian Pindar era um livro excecional que não merecia essa posição subalterna.

Embora seja hoje considerado um símbolo de Dublin (há quem organize autênticas peregrinações à capital da Irlanda por sua causa), Joyce saiu cedo da sua cidade natal. Logo em muito novo tinha-se em altíssima conta e, encorajado pelo pai, aos 20 anos partiu para Paris para se inscrever na Escola de Medicina. Achava a Irlanda demasiado pequena para o seu génio. De resto, toda a vida manteve uma relação ambivalente com a sua pátria. Por um lado era muito crítico e dizia coisas como «É perigoso deixarmos o nosso país, mas é ainda mais perigoso regressarmos a ele, pois nessa altura os nossos compatriotas, se deixarmos, vão espetar-nos uma faca no coração». Mas, ao mesmo tempo que admitia odiar a Irlanda e os irlandeses, dedicou-se a fazer uma laboriosa reconstrução mental de Dublin a partir de uma técnica antiga a que se chama ‘o palácio da memória’. É essa a cidade que aparece em Ulisses.

Nas suas palavras (citadas por Pindar), nessa obra Joyce pôs «tantos enigmas e quebra-cabeças que vou manter os professores ocupados durante séculos a discutir o que queria dizer, e essa é a única forma de assegurar a imortalidade».

Se Ulisses é complexo e difícil de digerir, Finnegans Wake, a sua última obra (que estava previsto ser a penúltima, pois Joyce passou os últimos anos a pensar escrever um livro curto e simples), é positivamente ilegível. Em grande parte porque Joyce propôs-se inventar todo um novo léxico para o escrever – talvez o facto de na Irlanda se falarem duas línguas, o inglês e o gaélico, tenha contribuído para essa inventividade linguística. O que é certo é que há dias, numa famosa livraria de Dublin, a Chapters, abri o Finnegans por curiosidade e fiquei tão baralhado que perdi qualquer vontade de ler mais. Só me veio à cabeça um dito espirituoso doutro irlandês, o poeta Oscar Wilde: «Sou tão esperto que às vezes não percebo uma única palavra do que estou a dizer».