Barcelona. Tudo corre bem para a catástrofe

Antes da tempestade vem a bonança. Aqui na Catalunha ela foi muito mitigada pela sensação que a partir da repressão ao referendo de 1 de outubro nada ficará igual 

Segunda-feira foi feriado em Barcelona. Fiesta. Polícias e manifestantes cumpriram, quase religiosamente a interrupção do conflito. Se por todos os prédios não tivessem semeadas de várias bandeiras da Catalunha nas varandas. Se não houvessem seyneras, estreladas. A bandeira oficial da Catalunha é a Seynera, mas a mais popular, nas janelas e nas casas, é a chamada estrelada, segundo o “El País” revela uma espécie de herança das guerras da independência dos cubanos contra os espanhóis. Sobre o fundo amarelo e riscas vermelhas, sobrepõe-se um triângulo, um símbolo de origem maçónica que significa a igualdade, onde se sobrepõe uma estrela de cinco pontas que afirma a ideia da liberdade. Na Gran Via de las Cortes Catalenes que atravessa a cidade, uma espécie de gigantesca avenida da Liberdade, há poucos prédios que não ostentem como desafio a “si” do referendo e a bandeira da Catalunha. Junto à gigantesca praça de Espanha há um que parece mostrar o humor dramático e irónico da situação: mais de 30 bandeiras catalãs convivem com uma janela que ostenta em firmeza uma bandeira de Espanha.

O único ponto que concentrava dezenas de pessoas, a meio da tarde, era a universidade. Escutava-se música. Escreviam-se cartazes, como “0 neurónios iguais a 100 guardas civis”, e discutia-se o que fazer nos próximos dias. À entrada um cartaz apelava que caso os estudantes tivessem conhecimento de abusos e assédios machistas os denunciassem naquele caixote.

A Guarda Civil e a Polícia Nacional colocaram milhares de efetivos vindos de toda a Espanha na Catalunha. Alguns desses milhares estão alojados em três barcos, dois deles no porto de Barcelona. Para além da ameaça dos estivadores locais não participarem nas manobras necessárias para a acostagem das embarcações, as valorosas forças da ordem tiveram que se debater com problemas bastante mais ameaçadores: um dos cruzeiros requisitado apressadamente para o efeito estava decorado em todo o seu vasto casco com figuras dos desenhos animados dos Looney Tunes. Com medo que o Piu Piu amarelo pudesse pôr em causa, a atitude marcial dos militares da benemérita, designação pia dada à Guarda Civil, os seus comandos mandaram tapar com um pano as pouco agressivas imagens. No mesmo momento, surgiu na internet uma petição para que libertassem os bonecos e os deixassem contemplar Barcelona do porto. Um dos alegados autores da petição, que por motivos da eventual falta de sentido de humor das forças da ordem, preferiu não dar o nome ao i, confessava: “se os polícias viessem vestidos de bonecos da Looney Tunes teriam muito mais sucesso entre os catalães. O humor tem mais capacidade de vencer do que a repressão”. 

Dizia um velho filósofo alemão, pegando numa declaração de um ainda mais vetusto pensador da sua terra, que a história acontece em tragédia e se repete em comédia. Aqui na Catalunha, parece que as coisas se vão fazer ao contrário: tudo se desenrola num crescendo para a 1 de outubro, a data prevista para o referendo rebelde, as coisas se possam suceder de uma forma bastante grave. 

Nos últimos dias, os acontecimentos têm vindo em crescendo: Madrid mandou colocar sob as ordens de um coronel da Guarda Civil todas as forças de segurança na região. O problema é que o homem, de nome Diego Pérez de los Cobos, já foi acusado de torturas no País Basco. No julgamento que se seguiu, vários dos seus subordinados foram condenados, mas ele não teve nenhuma pena. Irmão de um antigo presidente do Tribunal Constitucional, conhecido por ter atuado repetidamente sobre independentistas catalães, nomeadamente durante a consulta popular de 9 de novembro de 2016, é também filho de um homem que se candidatou repetidamente pelo partido franquista Ordem Nova. 

O esforço policial para impedir a realização do referendo na Catalunha, inconstitucional sob as leis de Madrid elaboradas durante a transição democrática, é tão grande que, no domingo passado, uma assembleia com centenas de eleitos em Saragoza, para conseguir uma solução negociada para a crise, com a presença de eleitos de vários partidos, como o Podemos, o Partido Nacionalista Vasco, e os herdeiros da Convergência e União da Catalunha foram atacados por quatro centenas de neonazis, à saída do Pavilhão Século XXI em que se encontravam reunidos cerca de 500 eleitos, entre os quais Pablo Iglesias e a presidente da Câmara de Barcelona, Ada Colau. Na agressão ficou ferida com gravidade uma presidente de um parlamento de uma região espanhola. Segundo as justificações que a polícia deu ao líder do Podemos, a presença no local de pouco mais de uma dezena de elementos da Polícia Nacional, devia-se à falta de efetivos em todo o país, devido à mobilização de milhares de polícias de todas as regiões de Espanha para a Catalunha.

Essa mobilização militar não é feita sem fervor nacionalista, costuma-se muito falar dos nacionalismos catalão, basco e galego, mas o nacionalismo espanhol costuma ser um aspeto da questão habitualmente disfarçado, como um elefante escondido atrás de um vaso numa sala, muita gente o vê, mas é normalmente ignorado pelos donos da casa e pela comunicação social em geral. O correspondente, da venezuelana TeleSur, em Espanha, Sérgio Rodrigo postou imagens em que se vê sair de Huelva uma coluna militar de guardas civis acompanhada de uma pequena multidão com bandeiras espanholas, que os acompanha aos gritos: “Viva Espanha” e “Dêem cabo deles”.  

Neste momento está tudo preparado para darem cabo do referendo dos catalães: a justiça já declarou que os membros das mesas eleitorais e até os eleitores que ocorram ao referendo são passíveis de ser condenados pelos crimes de sedição e desobediência. O que levou um dos habituais tertulianos de um canal de televisão a comentar com ironia: “há 53 mil presos em Espanha, com mais umas centenas de milhares de catalães, vai ser preciso contruir muito mais prisões”. Um catalão que ouvia ao meu lado o programa numa tasca atalhou: “ainda querem desenvolver a construção civil à nossa custa”.

Na terça-feira, a Guarda Civil deitou abaixo a página do parlamento catalão, depois de terem sido deitadas abaixo todas as páginas que se referem à convocação do referendo; o Tribunal de Contas exige ao antigo governo da Catalunha, dirigido por Artur Mas, que paguem 5,2 milhões de euros – alegadamente o custo da consulta popular não vinculativa de 9 de novembro do ano passado -; a justiça espanhola já deu ordem aos diretores das escolas da região para impedirem que o referendo decorra nas suas instalações; e o procurador-geral espanhol, José Manuel Maza está a pedir a prisão do atual presidente do governo catalão, Carles Puigdemont.

Como dizia ao i um estudante independentista concentrado à porta da universidade de Barcelona: “Rajoy é o verdadeiro pai e obreiro da independência da Catalunha, ele é uma autêntica máquina de fazer independentistas”.