Gabriel Rufián. ‘Não sou nacionalista. Sou republicano e de esquerda’

Para o deputado independentista o referendo de 1 de outubro não é ilegal perante a Constituição espanhola. E esta não é uma vaca sagrada, tanto que Aznar e Zapatero mudaram um artigo, a mando de Angela Merkel em 2011, numa só noite.

Gabriel Rufián foi o cabeça de lista da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), para o Parlamento de Madrid. São o partido independentista catalão mais votado que governam em conjunto com o Partido Democrático da Catalunha, do presidente Carles Puigdemont. Garante que o que se vai jogar no dia 1 de outubro são os votos de um povo desarmado contra a repressão de um Estado que perdeu a legitimidade.

Este referendo é um momento para conseguir obter uma decisão sobre a independência ou é mais um momento de mostrar as medidas de repressão e judiciais de Madrid?

São as duas coisas ao mesmo tempo. É um momento que culmina, sobretudo nos últimos quatro ou cinco anos, um processo político extraordinário e também pressupõe um desafio a um Estado tão anti-democrático que mostrou a sua regressão em termos de direitos e liberdades. O 1 de outubro é a única derrota possível para aquilo que nós chamamos o regime de 78, que está a imperar nos últimos 40 anos.

O problema é que este referendo é feito contra este estado de coisas que vocês criticam, mas fora do quadro legal estabelecido pela transição do franquismo para a democracia, que culminou numa Constituição que foi referendada, e na Catalunha, ao contrário do País Basco, onde a maioria da população não participou e  votou a favor, ganhou a Constituição.

É um debate histórico bastante interessante, mas que precisa de tempo para ser feito com profundidade. A maioria das pessoas queria fugir e acabar com a ditadura assassina franquista que tinha reinado durante décadas. Hoje assinalam-se até datas dos últimos cinco assassinados pouco tempo antes do fim do ditador. Nessa altura, para garantir isso, as pessoas teriam até votado num livro do Pateta, em qualquer coisa, desde que garantisse o fim do regime. Dito isso, eu defendo que as sociedades  não têm que ser obrigadas a adaptarem-se à legalidade, mas é a própria legalidade que tem que se esforçar e progredir no sentido de cumprir os anseios das sociedades. Um marco legal ou uma constituição que pretende impedir que 80% deste país possa votar, como as sondagens indicam que desejam, é um texto que não tem força de uma verdadeira legalidade. Dito isto, é falso que a Constituição espanhola não permita fazer um referendo como o que vamos realizar no dia 1.

Pelo que sei, não permite nenhum movimento que permita a saída ou divisão de Espanha. Creio que desde a negociação da transição é isso que lá está.

Nós queremos votar o Estatuto político da Catalunha. E isso não está proibido. Não sou eu que o digo. Defendem pessoa como Perez Royo, que é um constitucionalista e não é um independentista. É falso que a Constituição espanhola não permita fazer um referendo como o que se vai concretizar na Catalunha. E é preciso dizer que a Constituição não é um texto sagrado. Tanto é assim, que PSOE e PP mudaram-na numa só noite, no ano 2011, o artigo 135. A diferença é que nessa noite lhes telefonou provavelmente a chanceler Angela Merkel. 

Há uma frase dita por Unamuno em que ele disse a um comandante militar: ‘Vocês podem vencer porque têm a força, mas dificilmente convencerão, porque não têm a razão’. Mesmo que haja 80% de catalães que queiram votar, o que podem fazer contra dezenas de milhares de guarda civis dispostos a cumprir as leis de Madrid?

É uma frase curiosa, até porque Miguel Unamuno fez muitas considerações contra os catalães. Mas que podem fazer milhares de guardas civis quando milhões de pessoas querem exercer o seu direito a votar? Vai haver filas de quilómetros, o que podem fazer contra isso?  E no dia 2, dia 3 e dia 4, o que vamos fazer é aplicar o resultado deste referendo: se ganhar o sim, vai haver um processo constituinte para a independência da Catalunha: e se, pelo contrário, ganhar o não, vai haver muito provavelmente a convocação de novas eleições autonómicas.
Depois de duas eleições falhadas de fazer um governo alternativo ao PP de Mariano Rajoy, voltou-se para a bancada do Podemos e disse: ‘Até aqui estivemos com vocês nesta tentativa, mas se querem um país onde há um futuro diferente e que o PP não consegue governar, esse país já existe e chama-se Catalunha’.

Porquê que essa possibilidade de uma Espanha diferente que pudesse ser federal e eventualmente uma república é impossível?

Porque o Partido Popular ganha as eleições no conjunto do Estado espanhol.

E isso é um resultado democrático impossível de modificar no futuro?

Essa é uma pergunta que talvez tenha que ser feita aos oito milhões de pessoas que votaram no PP, havendo nesse partido 900 acusados judicialmente por corrupção. Apesar disso, o senho Rajoy ganha eleições. A alternativa em Espanha é o PSOE, o chamado Partido Socialista Operário Espanhol, coligados com Rajoy contra a autodeterminação da Catalunha, e a outra alternativa menor é Ciudadanos – de que equipa de futebol é a sua em Portugal?

Sporting, o que jogou esta semana contra o Barça. 

E essa equipa tem naturalmente uma equipa B. Os Ciudadanos são uma espécie de equipa B do PP de Mariano Rajoy. Se estas são as alternativas, nós defendemos que façamos a alternativa na Catalunha e que depois Espanha construa a sua. Eu ficaria encantado que fosse diferente. Que fosse possível uma alternativa em todo o Estado espanhol. Mas Mariano Rajoy tem hoje mais força aí do que tinha ontem. E aqui na Catalunha não ganha sequer uma câmara municipal.

Mas a eventual saída da Catalunha, uma das regiões mais à esquerda em Espanha, não é a garantia dessa vitória do PP por muitos e muitos anos?

Acredito no contrário, se a esquerda espanhola tivesse sido mais valente a apoiar a Catalunha, e têm tentado ser ultimamente com esta tentativa de reunião de eleitos em Zaragoza, teriam ganho mais apoio em toda a Espanha. Se tivessem sido menos calculistas a situação seria hoje melhor em todo o lado. 

Em 2014, a presidente da câmara de Barcelona afirmou que diria que ‘sim’ à consulta popular e ‘sim’ à independência. Hoje parece que diz talvez sim ao referendo, mas talvez não à independência.

Nós distinguimos entre a cúpula dos Comunes e do Podemos, e não digo com  acrimónia, que o programa da direção desse setor é pactuar com o PSOE à portuguesa, o problema é que aqui o PSOE não o quer, os socialistas sonham com pactos com o Ciudadanos e com o PP. E Colau não se entende bem o que quer: o que dizia em 2014 era muito claro e agora não. Provavelmente, porque tem os seus legítimos cálculos e intenções políticas. Mas aquilo que é claro para nós é que queremos interpelar diretamente as pessoas que votaram e simpatizam com esses setores. Dizemos a essas pessoas , que se querem uma mudança. Essa mudança já existe e é possível: chama-se Catalunha.

Um dos argumentos que se escuta em gente na rua, alguns até imigrantes que trabalham cá, é que a Catalunha dá demasiado dinheiro a zonas mais pobres do Estado espanhol, como a Andaluzia, de onde os seus pais creio que são originários. O que pensa disso?

Que é mentira e faz parte do argumentário apenas de uma pequena minoria. E que é muitas vezes utilizado em debate e em entrevistas, mas é falso. Aqui a imensa maioria do povo catalão pensa que a Catalunha devia ser ainda mais solidária daquilo que hoje é. Mas de uma forma mais racional: não para pagar aeroportos e grandes autoestradas desertas, mas para apoiar as pessoas racionalmente. 

Mas não deveriam poder votar no dia 1 todos os imigrantes de outros países que aqui vivem e trabalham, e não apenas aqueles que têm a nacionalidade espanhola?

Evidentemente. Mas o colégio eleitoral é igual a todas as eleições que aqui se fizeram. Nós gostaríamos de ter mudado a lei eleitoral espanhola e permitido mais direitos políticos a toda a gente que cá vive, mas é complicado: é necessário dois terços do Congresso e do Senado. É uma pergunta que se deveria fazer ao PP, PSOE e Ciudadanos.

Há uma diferença no nacionalismo catalão em relação aos outros nacionalismos, ou não se trata de um nacionalismo, mas de um direito à autodeterminação?

Eu não sou nacionalista. Aliás, a maioria da gente que está neste processo não é nacionalista. Nacionalistas são de facto as pessoas do PP, PSOE e Ciudadanos. Eu sou republicano e de esquerda.

E não se pode ser republicano e de esquerda num marco espanhol em vez só na Catalunha?

Porque no Estado espanhol ganha as eleições o Partido Popular. votam oito milhões de pessoas. 

Como é possível reivindicar a autodeterminação no quadro da União Europeia? 

Não estou de acordo, e de resto seria impossível perceber o quadro da União Europeia sem os processos de autodeterminação que se registaram nos últimos 40, 50, 60, 70 anos. Há um monte de Estados que não existia. E com todos os seus defeitos e misérias, uma coisa que me parece claro é que a UE é pragmática e que não quererá perder, do seu seio, um motor económico como é a Catalunha.

A minha pergunta é exatamente a inversa. Saem de Espanha por falta de conseguir decidir o vosso futuro e colocam-se, segundo criticam partidos como a CUP e os partidos mais à esquerda em Portugal, numa estrutura, a União Europeia, com uma série de défices em termos de democracia. Não é querer sair da boca do lobo para cair na boca do tigre?

Eu penso, defendo-o já há alguns meses, que é preciso fazer um referendo sobre a aceitação de determinados aspetos da UE, que são muitas vezes incompatíveis com as democracias plenas. 

Se ganha o sim no dia 1 de outubro, afirma que a Catalunha vai ser independente. Mas há condições logísticas para que possa ser verificável um resultado eleitoral numa consulta feita sob a vigilância de 10 mil guardas civis, e até por isso sem muitos dos aspetos logísticos que garantem a transparência do processo?

Sim. Quando se virem as filas quilométricas nos meios de comunicação internacional, toda a gente perceberá isso. E a tua pergunta estará respondida.