Referendo. Adormecer em Espanha e acordar na Catalunha

Mariano Rajoy poderá ficar na História como um dos pais de uma eventual independência da Catalunha. A sua falta de jeito político pode ter feito de um referendo duvidoso uma vitória dos independentistas. 

A reunião plenária da “grande festa” da Escola Joan Miró começou com 60 pessoas e as explicações calmas dos “animadores” das atividades que antecederiam a grande festa da música de 1 de outubro, nome de código do referendo para decidir a independência da Catalunha. Leonardo e Alfred revezavam-se nas explicações dadas em tom intimista.

A partir de sexta-feira, centenas de escolas e outros edifícios foram ocupados por milhares de voluntários, em que pontificavam os pais, professores e alunos da maioria destes estabelecimentos de ensino. Na escola primária Joan Miró e no vizinho Instituto Ernest Lluch juntaram-se mais de 300 pessoas para garantir que as instituições estariam abertas durante o referendo, apesar das ordens judiciais que mandavam a polícia, nomeadamente a polícia autonómica, os Mossos d’Esquadra, colocada sob o comando de um oficial da Guarda Civil, que foi processado por tortura, impedir que qualquer edifício público ou outro fosse palco do referendo.

Foi antes da meia noite de sábado que na escola primária se reuniram 60 pessoas, enquanto 140 faziam o mesmo no instituto. A ideia foi manter um conjunto de atividades nesses espaços que justificassem a sua abertura e impedisse que fossem encerradas pela polícia. Nessa noite haveria uma sessão de filmes contínua para pais, monitores, professores, alunos e vizinhos. Como alertaram dois ativistas, este era um espaço escolar, que deveria ser preservado e estimado de modo a reabrir para aulas na segunda-feira. Guillermo alertava que durante a noite, os Moços d’Esquadra iriam aparecer, para lhes perguntarem pelas atividades que estavam a fazer, e que tinham ordem para os despejar às seis da manhã.

“Nessa altura, veremos o que podemos fazer para garantir que a festa da música [nome de código do referendo] se realize a partir das oito horas da manhã” , explicava Alfred, no cimo do seu metro e noventa e com a curiosa inscrição na t-shirt: “Tropical Vice”. “Podemos fazer resistência pacífica, vai depender do número de pessoas que cá estiver, mas ninguém deve fazer algo com que se sinta pouco confortável para fazer”, realçava Leonardo. Os dois alertaram para os cuidados a ter ao tirar fotos às forças policiais em ação: “caso consigam apanhar imagens fortes de repressão, passem-nas a um jornalista amigo, porque atualmente com a “lei da mordaça”, uma denúncia cidadã pode significar uma multa de mais de 300 euros”.

Em conversa com Alfred, manifestou-se confiante no referendo, “a independência não vai cair do céu aos trambolhões, mas vai ser fundamental para que se perceba que a maioria das pessoas não quer obedecer a Madrid, e, sobretudo mostrar ao mundo a irracionalidade do comportamento repressivo dos espanhóis”. Pensa que com um referendo cujo resultado Madrid não vai aceitar, as coisas vão mudar assim tanto, perguntei-lhe. “Não espero nada de Madrid, mas a Europa tem que perceber que isto não pode continuar. É demasiado mau”, diz-me. Ao meu lado, um senhor de idade, dizia à jornalista do “Público”, Sofia Lorena, que “era incrível que a líder dos Ciudadanos da Catalunha, Inés Arrimadas, fosse tão bonita e tão anticatalanista”, perante as risadas gerais.

As pessoas foram-se deitando. Às duas da manhã apareceram dois polícias autonómicos que perguntaram pelas atividades culturais e se as crianças tinham comido bem. Perto das cinco da manhã, já se tinham somado mais umas centenas de pessoas nas duas escolas, que distam poucos metros. Os helicópteros da Guarda Civil faziam vários voos ameaçadores sobre as escolas. O carro patrulha dos Mossos d’Esquadra que apareceu já vinha com outras intenções. Queria entrar na Escola e expulsar os presentes. Perante a recusa, das centenas dos presentes, que gritavam “votaremos”, foi feita uma comunicação à central. Apareceram mais mossos e um oficial que pediu para que um responsável fosse identificado. Alfredo assinou o auto e ficaram apenas quatro polícias a vigiar as duas escolas.

Depois de várias manobras, foi pedido às muitas centenas de pessoas que estavam presentes que formassem uma fila. Foi comunicado que, tendo em conta que a justiça espanhola mandou apreender as cartas que sorteavam os eleitores que deveriam estar nas mesas, os primeiros eleitores de cada mesa assumiriam a tarefa. Pedia-se ao presidente de cada uma das secções de voto que tivesse um smartphone para descarregar a aplicação que permitiria aceder ao censos global e dar aos eleitores a possibilidade de votarem em qualquer mesa. Nessa altura o governo autonómico garantia que mais de metade das mesas previstas em quase 3000 locais eleitorais estavam ocupadas. Funcionar já era algo mais difícil. Os peritos da Guarda Civil estavam a conseguir crashar o programa, obrigando as mesas a importarem versões mais potentes e seguras. Em seguida, as autoridades passaram a reduzir o sinal da internet na zona dos locais eleitorais. A situação nas duas escolas só foi normalizada perto das 12 horas.

Violência

Entretanto sucediam-se um pouco por toda a Catalunha imagens de violência da repressão da Guarda Civil e das unidades de intervenção da Policia Nacional, que tomaram de assalto as duas  secções em que estava previsto que votasse o presidente do governo Catalão, Carles Puigdemont e a presidente do parlamento catalão, Carme Forcadell. Isto apesar da presença de dezenas de observadores internacionais e de organizações de direitos humanos que defendem o direito ao voto em contexto de violência política. Um dos 200 ativistas presentes confessava que costumava trabalhar em países em guerra, e nunca tinha pensado encontrar aquelas práticas na Catalunha.  

A jornada significou um balanço eleitoral pesado para o governo de Mariano Rajoy, mesmo sem se conhecerem ainda os resultados  do referendo que o governo de Madrid quis impedir, os 761 feridos, dois deles graves, que a repressão dos mais de 10 000 Guardas Civis e Polícia Nacional trazidos de todas as partes de Espanha deixaram nas ruas da Catalunha, segundo garantiu o presidente do governo catalão, Carles Puigdemont. As imagens de homens, mulheres e velhos espancados quando tentavam votar num referendo, considerado ilegal pelo o governo de Madrid e o Tribunal Constitucional espanhol estão a correr mundo, dadas as centenas de jornalistas estrangeiros presentes. “Esta não é a imagem que queremos dar de Espanha, senhor Rajoy”, postou no Twitter o pouco simpatizante dos nacionalistas catalães, Alberto Garzón.

Pelo seu lado, a vice-presidente do governo de Madrid, Soraya Sáenz de Santamaría, criticou “a irresponsabilidade de Puigdemont e do governo autonómico, só compensado com o imenso profissionalismo dos corpos de segurança do Estado”. Mas os elogios não foram iguais para todos os homens armados, a justiça admite abrir um processo contra os Mossos de Esquadra por não terem participado nas ações repressivas que lhe se pedia. A meio da tarde, a 200 metros da escola Joan Miró, cerca de 20 homens das unidades de intervenção da Polícia Nacional tentaram invadir uma assembleia de voto numa escola infantil. Foram confrontados e impedidos por cerca de mil catalães a cantar e a dizer que as suas únicas armas eram o voto.

Toda a gente sabia que nestes dias se jogava um jogo político de posições e de legitimidades. Se nos próximos meses a opinião pública europeia mudar sobre a causa da Catalunha, e passar a simpatizar com a independência, isso vai-se dever em partes iguais à falta de jeito político do presidente do governo de Madrid, Mariano Rajoy é à determinação com que alguns milhões de catalães enfrentaram as ameaças, as condenações judiciais e a violência da polícia. Muito provavelmente, segundo diziam todos os estudos eleitorais conhecidos, menos de 50% dos catalães eram até dia 1 de outubro favoráveis à independência; mas quase 80% estavam de acordo com o direito de poderem decidir pelo voto a forma como pretendem ficar, ou não, ligados a Espanha. Frente ao pano que os catalães agitaram frente ao líder do Partido Popular e aos seus aliados nacionalistas espanhóis dos Ciudadanos, estes limitaram-se a investir com o máximo de força que tinham.

Depois da prisão de 15 elementos do governo catalão, da ameaça judicial feita, com a eventual acusação de crime de sedição a todas as pessoas que organizaram o referendo, às milhares de pessoas que foram assegurar  as mesas eleitorais e às muitas centenas de milhares que participaram, o governo de Mariano Rajoy garantiu que tinha desarticulado o referendo ilegal independentista, que vai, pelo menos contra o espírito da carta magna espanhola, negociada durante a transição da ditadura franquista para a democracia, e que foi aprovada em 1978, que diz claramente que Espanha é indivisível e que essa unidade é garantida, em última instância pelo exército espanhol.

Durante muitos anos, os nacionalistas catalães foram fiéis aliados dos diversos governos de Madrid e apareciam muito mais como regionalistas do que como gente que ambicionava de facto mandar no seu espaço nacional. O chumbo do Estatuto Catalão protagonizado pelo Partido Popular veio transformar, somada à crise económica mundial, a posição dos catalães. O estatuto foi aprovado no Parlamento da Catalunha, nas cortes de Espanha e posteriormente aprovado em referendo por mais de 80% dos votantes num referendo catalão.

O Partido Popular, pela voz de Rajoy, exigiu no parlamento que os espanhóis fossem todos ouvidos num referendo sobre a matéria, recolheu cerca de quatro milhões de assinaturas, e mandou o documento para o Tribunal Constitucional espanhol, órgão conhecido pelo seu nacionalismo espanhol e ligações partidárias. Os juízes, que anteriormente nunca tinham visto nenhum problema no documento, chumbaram alguns artigos, mas sobretudo na sua sentença, estabeleceram que qualquer lei do parlamento catalão, mesmo em áreas das suas competências próprias e exclusivas, estaria abaixo de qualquer legislação ou regulamento que emanasse dos órgãos do Estado madrileno. Hoje, como já fez entender a sua companheira de partido Esperança Aguirre, o PP deve estar muito arrependido de ter acicatado os sentimentos dos catalães.

Na rua um velho homem interpela os dois Mossos d’Esquadra que passaram o dia à frente da escola Joan Miró: “Não têm vergonha de terem aqueles tipos a bater na vossa gente?”, os agentes meio enrascados justificavam-se com o cumprimento das ordens. O homem não estava convencido, “custa tanto irem afundar aquela porcaria de barcos em que eles estão [alojados]?”. A conversa baixou de tom, com outro catalão a dizer: “não há ninguém que vos renda? Estão aqui desde as cinco da manhã, não querem que vos traga nada para comer”.

Ao meu lado, dois jovens ironizavam, um deles com uma estrela vermelha ao peito: “nunca pensei acordar em Espanha e vir a adormecer na Catalunha”