O rapto de Lutero

Em maio de 1521, numa estrada do centro da Alemanha, um grupo de homens assalta um carro puxado a cavalos que segue na floresta, rapta o passageiro e arrasta-o para um castelo da Turíngia, onde ele ficará em ‘cativeiro’ durante cerca de um ano. O passageiro, que segue disfarçado de fidalgo, é nem mais nem…

Em maio de 1521, numa estrada do centro da Alemanha, um grupo de homens assalta um carro puxado a cavalos que segue na floresta, rapta o passageiro e arrasta-o para um castelo da Turíngia, onde ele ficará em ‘cativeiro’ durante cerca de um ano. O passageiro, que segue disfarçado de fidalgo, é nem mais nem menos do que Martinho Lutero e o rapto encenado constitui um subterfúgio encontrado pelo príncipe eleitor para o proteger numa altura em que está acusado de heresia – ou seja, com o equivalente ao que hoje seria um mandado de captura da Interpol.

Quatro anos antes, Lutero afixara na porta da Igreja de Vitemberga as suas 95 teses contra as indulgências (o perdão de pecados em troca do pagamento de uma soma estipulada em dinheiro), pondo em marcha uma contestação à Igreja de Roma que haveria de resultar na cisão entre católicos e protestantes.

Foi precisamente o quinto centenário das 95 teses – que se celebra daqui a um mês, a 31 de outubro – que me levou a regressar a Martinho Lutero, um Destino, do historiador francês Lucien Febvre. Parte biografia, parte ensaio, trata-se de um livro bem escrito e com momentos empolgantes sobre a vida, o pensamento e as realizações deste professor de Teologia.

As teses não eram, diz Febvre, «uma declaração de guerra», mas sim «uma advertência», «uma chamada à ordem, severa, em nome de Deus». Só depois começou a troca de palavras com a Santa Sé, que culminou na sua decisão de comparecer perante a Dieta de Worms, uma reunião de altos responsáveis políticos e religiosos. Ali, num ambiente de enorme tensão, Lutero é questionado se renega o que escreveu, e responde: «Não creio nem no Papa nem nos concílios só:_é certo que erraram frequentemente e se contradisseram a eles próprios». Depois desta provocação, não admira que sentisse necessidade de se refugiar sob falsa identidade num castelo durante um ano. Ali, incapaz de viver ociosamente, entregou-se à escrita e, em particular, à tarefa ambiciosa de traduzir a Bíblia para o alemão. Febvre fala sobre a luta do tradutor para conciliar «a língua forte, a língua rude e tosca da gente do povo» com «a língua fria, artificial, alambicada da administração», de forma a obter um texto que permitisse «que os homens do povo alemão se abeirem da palavra de Cristo e a compreendam como a criança ouve e compreende a palavra de sua mãe». Com passagens como esta, é difícil não ficarmos a simpatizar um bocadinho com Lutero e a sua causa.

Lucien Febvre

Martinho Lutero, um Destino