Reabilitação. A nova vida de três igrejas

Três das igrejas mais antigas da capital portuguesa foram alvo de obras de recuperação nos últimos anos. Com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, os três espaços ganharam uma nova vida, mas mantiveram a sua identidade, dando primazia ao património histórico e cultural ali acumulado ao longo dos séculos.

A História de Lisboa não se lê apenas nas obras bem guardadas na Biblioteca Nacional ou nos documentos arquivados na Torre do Tombo, mas sim nas suas ruas e ruelas, nos becos sem saídas e nos miradouros, nos artífices que sobrevivem ao longo dos tempos e nas pequenas lojas que têm ainda forças para manter as portas abertas.
Outro dos elementos que nos conta histórias sobre Lisboa – e sobre o país – são as igrejas. Quer através das suas paredes, dos ornamentos ou das obras escondidas, é possível fazer um retrato fiel da cidade portuguesa através da sua estrutura e recheio. Três das igrejas mais antigas de Lisboa foram alvo de obras recentemente e apresentam agora um espaço renova, mas dando sempre prioridade ao património histórico e cultural.

Igreja da Conceição Velha

A Rua da Alfândega sempre foi uma das mais movimentadas da capital portuguesa, mas foi também das que mais sofreu com o terramoto de 1755. No meio dos escombros, um pequeno edifício sobreviveu à força da natureza. A Igreja da Conceição Velha resultou assim da reconstrução da antiga Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia de Lisboa, sede da primeira Misericórdia do país. Classificada como Monumento Nacional, é um dos melhores exemplares das estruturas manuelinas. No entanto, apesar da sua riqueza histórica, esta igreja acabou por se ir deteriorando ao longo dos anos – era urgente arrancar com obras de recuperação.

Assim, no final de 2015, assinalou-se a conclusão das obras de recuperação e reabilitação realizadas no âmbito do protocolo de colaboração entre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a Paróquia de Santa Maria Madalena – ao todo, a Santa Casa investiu 1,1 milhões de euros neste projeto. “O apoio da Santa Casa permitiu requalificar o espaço e fazer com que a sua beleza original voltasse à luz dos nossos olhos. Muitos dos elementos que a igreja apresenta agora são iguais aos usados na reconstrução do edifício a seguir ao terramoto”, explicou João Manuel Pimenta, uma das pessoas que acompanhou as obras de recuperação.

Todas as pedras, os marmoreados e o teto foram restaurados, tendo existido também uma intervenção no pavimento. “Estamos muito perto do rio Tejo e, com a passagem de lençóis de água por baixo da igreja, o chão de madeira começava a ceder. Houve um banco que chegou mesmo a afundar”, contou. Com esta recuperação, é possível exibir muito do património móvel até aqui ‘escondido’ numa igreja escura e em estado de degradação: entre as relíquias guardadas, destaca-se a imagem da Nossa Senhora que se encontrava numa ermida onde hoje em dia se ergue o Mosteiro dos Jerónimos. Segundo João Manuel Pimenta, os navegadores costumavam rezar a esta imagem de 1430, pedindo que as viagens terminassem em segurança. “Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral passaram diante desta imagem”, afirma.
Hoje, a igreja está recuperada e conta até com outros espaços, onde podem ser acolhidas exposições, mas que têm também condições para receber peregrinos que precisem de descansar.

Capela de São Roque

O projeto inicial da Capela de São Roque, também conhecida como Capela do Antigo Arsenal, data de 1761. A sua construção, no Arsenal Real da Marinha, foi feita a pedido da Irmandade dos Carpinteiros de Machado, artífices da construção naval que escolheram para seu padroeiro São Roque. 

São Roque é visto pela Igreja Católica como o protetor contra a peste e é o padroeiro dos inválidos e dos cirurgiões. Aquando da proliferação da Peste Negra, um mal que matou milhões de pessoas em Portugal, São Roque voluntariou-se para ajudar os enfermos da localidade de Acquapendente, na Itália, conseguindo curar algumas pessoas apenas com um bisturi e o sinal da cruz. De seguida, passou por várias localidades italianas e ajudou várias pessoas a recuperar desta doença. 

Reza a lenda que o próprio São Roque acabou por ser contaminado pela peste, decidindo isolar-se numa floresta para não contagiar outras pessoas. Todos os dias, o cão de um senhor muito rico das redondezas, de seu nome Gottardo Palastrelli, levava-lhe um pão para conseguir alimentar-se. Palastrelli apercebeu-se do que se estava a passar e ajudou São Roque, que acabou por conseguir curar-se. Regressou à localidade francesa de Montpellier, sua terra natal, onde foi detido, sob a acusação de espionagem, e acabou por morrer na prisão, com apenas 32 anos.

Com a chegada da peste a Portugal, muitos rezaram a São Roque para os proteger. Após o terramoto de 1755, a Irmandade dos Carpinteiros de Machado ficou sem um local de culto ao seu santo, conseguindo o espaço que hoje conhecemos, junto à Ribeira das Naus, em Lisboa, para construir uma capela. Apesar de ser pequena, o pé-direito de cerca de 16 metros dá a esta capela uma imponência extraordinária, bem como toda a decoração do seu interior, adquirida ao longo dos anos, conforme as possibilidades financeiras da Irmandade.

A Capela de São Roque, que está inserida no edifício da Administração Central da Marinha Portuguesa, necessitava urgentemente de uma intervenção. Assim, em 2016, foi celebrado um protocolo de colaboração entre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a Marinha. A Santa Casa disponibilizou-se a apoiar as obras com um valor de 120 mil euros.
O local ganhou uma nova vida após a recuperação da sua “nave abobadada, das paredes laterais revestidas por painéis de azulejos setecentistas, do altar-mor de talha dourada e tela pintada a óleo, e uma série de outros detalhes”, como se lê no site da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Igreja de Santa Isabel

Como é possível um céu pintado num teto ‘ganhar vida’ perante os nossos olhos? Vemos as nuvens a ‘flutuarem’ suavemente num céu límpido, mas sabemos se trata apenas de um desenho, de uma mancha de tinta numa tela. É esta a sensação que se vive quando se admira o teto da Igreja de Santa Isabel, em Campo de Ourique, Lisboa. Em vez das tradicionais figuras, dos ornamentos ou dos excertos da Bíblia que vemos na maioria das igrejas portuguesas, esta apresenta-nos um teto celestial.

A ideia surgiu há cerca de oito anos. O artista suíço-americano Michael Biberstein inaugurava uma exposição na Appleton Square chamada “Works on Paper”. Muitos ficaram impressionados com o seu trabalho, onde o céu é o rei. Entre os admiradores estava o padre José Manuel Pereira de Almeida, da Igreja de Santa Isabel. 

Há muito que se pensava na necessidade de reabilitar a igreja e de lhe dar uma nova luz, abdicando do teto cinzento que a limitava. Surgiu assim a ideia de convidar Michael Biberstein e propor-lhe a criação de céu ‘vivo’ que desse uma nova vida à igreja. E assim começou o desafio. 

Michael Biberstein morreu em 2013, antes da conclusão da obra. Esta estava toda pensada, existia até já um projeto de como ficaria no cimo da igreja. Assim, a paróquia decidiu continuar o seu trabalho e terminar o céu de Santa Isabel, mas os entraves financeiros começavam a atrasar a conclusão da obra. Até que, um dia, o padre José Manuel Pereira de Almeida recebe um telefonema. “Do outro lado estava o senhor Provedor [da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa], que me disse que seria dado um apoio à Igreja de Santa Isabel, por forma a concluirmos a obra”, contou.

Assim, a Santa Casa avançou com mais de metade do financiamento necessário – 222 mil euros. Em julho do ano passado, a Igreja de Santa Isabel voltou a abrir portas com um novo teto. Se se deslocar até esta igreja, sente-se e pare uns momentos a contemplar este céu. Irá aperceber-se de uma ilusão ótica, onde as nuvens mexem-se muito ‘ao de leve’, dando a sensação de estarmos num local de culto ‘a céu aberto’.