Os Negros. Qual é a cor que marca a fronteira entre eles, nós e o ódio?

Estreia-se hoje no São Luiz a mais perigosa das peças de Jean Genet. Cabe ao Teatro Griot, uma companhia portuguesa fundada por atores negros, escolher se aceita ser a arma de um ataque sem precedentes dirigido aos brancos

Quase seis décadas volvidas sobre a estreia de “Os Negros”, o mais incendiário dos textos para teatro de Jean Genet, é provável que em nenhuma época como nesta a tentação de relativizar ou passar ao lado da “reivindicação do Mal” – repetidamente expressa na obra do autor francês – tenha sido tão forte. Ao sublinhar–se a atualidade desta peça, é normal que se tomem todas as precauções face à extrema negatividade deste génio calamitoso, preferindo ver-se nela uma representação elevada ao absurdo dos preconceitos atirados pelos brancos sobre os negros para se tornar mais eficaz no efeito de denúncia da mitologia racial que faz do negro esse outro, esse ser desentranhado – às vezes estranho, outras um monstro.

Acontece que, ao invés de uma reflexão sobre essa “exclusão trágica”, a peça comporta-se mal assim que nela se busque uma utilidade moral. A sua “imaginação sulfúrica” evade-se a quaisquer critérios retóricos, a cada momento vai mais longe do que poderia supor-se, espuma de raiva, firmando um ataque lancinante à ordem social burguesa. É preciso recordar como Genet começou por deixar uma coisa muito clara: “Esta peça não foi escrita para os negros, mas sim contra os brancos.” Descrita como “uma construção em abismo”, neste “teatro de exorcismos”, mais do que por qualquer engajamento ou princípio de justiça, a peça é movida pela repulsa e pela cólera, aproveitando-se dos códigos do teatro para abarcar a totalidade da vida comunitária. O teatro volta-se, assim, contra a comunidade, e serve para expô–la e torturá-la, ao ridicularizar esses rituais que condicionam o comportamento humano em sociedade.

“Trata-se, antes do mais, da forma de revolta própria daquele que a sociedade exclui”, frisou Georges Bataille em “A Literatura e o Mal” (edição Letra Livre, 2016), num ensaio em que esclarece como os excluídos de uma sociedade justiceira, impedidos de aceder aos meios para inverter a ordem existente e incapazes de conceber quaisquer outros, não deixam de admirar os valores, a cultura e os hábitos das castas privilegiadas, mas conseguem ver-se livres da vergonha, enfeitando-se orgulhosamente com a marca da sua infâmia.

Escrita para que 13 atores negros a representassem, se a indagação sobre o que é, afinal, um negro – “e, antes de tudo, qual é a cor dum negro?” – acaba por impor-se a quem vê, nas suas sobreposições dramáticas, só há uma coisa de que Genet não prescinde: de escoriar a sua audiência. Disto mesmo há um episódio significativo e que se destaca nas sucessivas encenações que a peça teve um pouco por todo o mundo: conta-se que Eugène Ionesco – “o pai do teatro do absurdo” – deixou a sala de espetáculos antes do fim da peça, admitindo que ficara “chocado enquanto branco” ao ser vilipendiado por isso mesmo.

“Volto a repetir: esta peça, escrita por um Branco, destina-se a um público de Brancos”, diz Genet nas suas indicações para a representação da peça. “Mas se por um acaso muito estranho for representada para um público de Negros, será necessário, em cada sessão, convidar um Branco – homem ou mulher. O produtor do espetáculo deverá recebê-lo com a maior solenidade, fazer com que se vista de cerimónia e conduzi-lo ao seu lugar, de preferência na primeira fila da plateia. Os atores irão representar só para ele. E durante todo o espetáculo um projetor incidirá sobre este Branco simbólico.”

Posto isto, seria um erro capital confundir a veemência de Genet com a de um desses palhaços gozando do privilégio de artistas e que experimentam de tudo com o propósito de, como eles dizem, “espicaçar as consciências”. Mas se for para cair no erro, certamente o seu autor perdoaria mais facilmente que fosse confundida com uma dessas farsas, e que a despojassem da sua má-fé, do seu caráter aviltante, desde que não fosse reconduzida ao serviço do apaziguamento de tensões raciais. De resto, se levada às últimas consequências, o mais certo é que instigasse desacatos e violência.

Quando o São Luiz surge como parceiro do Teatro Griot, é natural que o programa evite os aspetos mais melindrosos que a peça coloca à sua audiência. Infelizmente, e levando em conta que se trata da quarta encenação da mesma por Rogério de Carvalho, o pouco que foi mostrado no ensaio para a imprensa não alimentou grande expetativa para esta nova e brevíssima temporada – ficando a peça em cena apenas até dia 15 de outubro. Tendo-se recusado a dar entrevistas, o encenador angolano, aos 81 anos, tem atrás de si um percurso que nos inibe de nos acomodarmos a juízos apressados. Não é o Grande Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, em 2012, que nos convida a um sinal de reverência, mas um trabalho de décadas que o distingue entre os autores intransigentes e infatigáveis na busca de um teatro que não se dilua neste tempo detergente e mantenha a sua têmpera confrontacional, o risco entre o tudo e o nada.

Há, contudo, um desafio acrescido em cada nova encenação de uma peça que, segundo o próprio autor, ao ser levada pela primeira vez a palco, encenada por Robert Blin, “atingiu a perfeição”. Genet avisou que qualquer tentativa de a imitar não poderia senão degradá-la, e assim incitou os vindouros a inventarem novas soluções cénicas, sendo audaciosos e, ao mesmo tempo, rigorosos como Blin foi.

Numa operação dramática que, apesar da crueza dos seus propósitos, não abdica de um ostensivo caráter lúdico, e que reforça sempre um conteúdo alegórico, os 13 atores em palco não passam de ecos ou fantasmas de um certo esquema mental identificado com o eurocentrismo. “Quando vemos negros, vemos outra coisa além de fantasmas precisos e sombrios nascidos do nosso desejo? Mas, então, que pensam esses fantasmas de nós? Que jogo jogam eles?”, questiona-se Genet.

Os negros encenam o homicídio de uma rapariga branca, crime que, afinal, não passa de uma distração. Enquanto isso, um deles é julgado por traição e há uma revolução que está a ser cozinhada nos bastidores. Os negros estão no palco, são atores e arquétipos definidos pelos preconceitos típicos dos brancos. Correspondem-lhes, enquanto outros cinco, num nível superior, envergam máscaras brancas e mimetizam os gestos, a indignação e o choque da corte, arrastando pelo chão a hipocrisia dos mestres que os colonizaram. Ao mesmo tempo, penitenciam-se por não terem sido capazes de reagir mais cedo.

Inspirado no filme “Os Mestres Loucos” (1954), de Jean Rouch, que documenta um ritual de possessão e purgação coletivas, com negros nativos do Gana a trazerem para um terreiro, nos arredores de Acra, uma forma primitiva do teatro enquanto processo libertador da doença, uma encenação que alegoriza o trauma do colonialismo inglês, Genet ficou claramente impressionado pela forma como aqueles nativos encarnaram, com uma violência convulsiva e espasmódica, e seguindo o comando rítmico de tambores tribais, o seu olhar sobre os gestos e hábitos, as atitudes, os rituais e hierarquias dos brancos que os dominavam.

Entre os atores negros que agora levam esta peça a cena, o português flutua entre os sotaques que denunciam a sua própria “aventura” colonialista. Às vezes também se afunda, e as falas ficam pelo caminho. As interpretações são igualmente desiguais, e se Genet exigiu que o grotesco dominasse o estilo da representação, com as falas a soarem num tom trágico, o que se pode dizer é que, no ensaio que pudemos ver, persistia ainda uma desafinação nos instrumentos desta ópera acusatória. Os negros não pareciam ter-se dado conta de que, mais do que servir caricaturas, estão ali para nos ferirem de morte. É natural, no entanto, que os próprios elementos desta companhia, que se tem dedicado tão firmemente a explorar a “emergente identidade europeia contemporânea”, acusem o conflito face a um texto que não apenas suspeita desse encontro como rejeita frontalmente a assimilação.